Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 17 de setembro de 2011

sessão nostalgia: os paralamas do sucesso

... e na versão da cássia eller

minimalismo

Releio a parte final do meu texto de abertura. Este blog não pretende nada. Um camarada me escreveu há cerca de dois meses dizendo coisas supimpas do meu texto de abertura, Lacan e tal. Lisonjeada. Mas é o seguinte: este meu mar costuma ser bem caprichoso ― o que de fato busco aqui obedece a demandas muito próprias. Tenho vontade de escrever, simplesmente, pelo prazer de escrever, de alinhar palavras e frases umas após as outras e ver o que sai. E não me esqueço de uma entrevista lida há bastante tempo com Raduan Nassar, então com dois livros publicados, que disse com todas as letras que tinha abandonado as letras para criar galinhas, além de outras temeridades. Poucas vezes vi tanta força no discernimento de um destino. Aquela entrevista me ajudou a saber mais de mim.

Clair de Lune

Felix Vallotton, Clair de Lune, 1895 (imagem obtida aqui)

José Paulo Paes

PISA: A TORRE

em vão te inclinas pedagogicamente

o mundo jamais compreenderá a obliquidade dos
bêbados ou o mergulho dos suicidas.


Os melhores poemas de José Paulo Paes. 3. ed. São Paulo: Global, 2000, p.167.

Roda Viva (Chico Buarque e MPB4)

ABC

Disse à minha analista que estudei até a terceira série num lugar chamado Escola Singular de Destino. O verbo estudar merece ser sublinhado. Apesar do dado selvagem iminente de tudo, eu estudava, e, conforme já postei aqui, com a cartilha Caminho Suave. E sem cogitar sequer o que era destino, o que significava esta palavra, o alcance das sete letras numa palavra nem feia nem bonita ― as altas metafísicas não entravam nas primeiras letras ―, eu gostava daquela cartilha, da sugestão do caminho suave. Minha candura apostava nele, embora os primeiros sinais de aridez e violência se fizessem notar, até mesmo pelo abandono de tudo. Alguma coisa ali despertava o meu amor, porque o resto, apesar de incômodo, ficava nos limites da palavra incômodo, não chegava até mim. O que chegava era outra coisa, de uma opacidade que só fui perceber quando precisei começar a tentar entender as coisas, as grandes e as pequenas, o contorno que minha vida tomou, às voltas com outra cartilha, outro ABC.

Não ver no Mundo a sua face ―
É muito tempo ― até que eu ache
Onde isto ― é tudo só
Uma cartilha ― para a vida ―
Na prateleira ― inatingível ―
Fechada ― para nós ―

Mas a cartilha é o que me basta ―
Livro nenhum ― me fará falta ―
Por mais raro ― o saber ―
Pode alguém ser ― o mais instruído ―
Tomar nas mãos ― o Paraíso ―
Eu só quero ― o ABC ―


Not in this World to see his face ―
Sounds long ― until I read the place
Where this ― is said to me
But just the Primer ― to a life ―
Unopened ― rare ― Upon the Shelf ―
Clasped yet ― to Him ― and Me ―

And yet ― My Primer suits me so
I would not choose ― a Book to know
Than that ― be sweeter wise ―
Might some one else ― so learned ― be ―
And leave me ― just my A-B-C ―
Himself ― could have the Skies ―

DICKINSON, Emily. Alguns poemas. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.64-65.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Rainer Maria Rilke: Livro de Horas

Amiúde penso: há de haver arcas de tesouros
onde estas muitas vidas jazem todas
como couraças, como liteiras ou berços
a que jamais subiu um ser autêntico,
e que são como roupas que vazias
não se aguentam em pé e ao caírem dobram-se
junto às grossas paredes de pedra trabalhada...
E quando à noite eu me afasto cada vez mais
de meus jardins, onde eu fico cansado,
eu sei: então todo caminho leva
ao arsenal das coisas não vividas.
Árvore não há lá, ao deixar-se a terra
e, como em volta de um presídio, há um muro
sem janela nenhuma, em sétuplo cercado;
e seus portões, de férreas dobradiças,
armados contra os que ali dentro anseiam,
têm grades feitas por mãos humanas.  


RILKE, Rainer Maria. Livro de horas. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.109.

Gates of Eden - Bob Dylan (cover)

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Emily Dickinson

Se o meu Riacho é fluente
Há de secar ―
Se o meu Riacho é Silente
Ele é o Mar ―

Que cresce. Em meu espanto
Tento escapar
Para um (dizem que existe) Canto
Onde “não há Mar” ―
  
*
Because my Brook is fluent
I know ‘tis dry ―
Because my Brook is silent
It is the Sea ―

And startled at its rising
I try to flee
To where the Strong assure me
Is “no more Sea” ―

DICKINSON, Emily. Não sou ninguém: poemas. Trad. Augusto de Campos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 90-91.

aviarium (curta de animação)



“This is a surreal, dreamlike journey through apocalyptical landscapes.” Quando a música começa a empolgar, o corte, o ranger do metal, da máquina enferrujada. O próprio voo das aves parece emperrado sobre landscapes monótonas e bizarras. O pássaro pousa sobre ruínas. 

livros, panelas, a vida

Comprei panelas, e mudei bastante os hábitos alimentares. Sei cozinhar, agora sei que sei. Não há qualquer mistério: observo as panelas, os alimentos cozinhando, o fogo fazendo o papel que lhe cabe. Mais de uma vez, diante do fogo transformando em alimento aquilo que vou jogando nas panelas sem muita fórmula, ponderei sobre esse estranho poder de transformação do fogo, e me pareceu entrever qualquer coisa da vida no processo, resumido de forma tosca no dito “O todo é maior que as partes”. Ocorre que na busca pela frase do Dedalus no Ulisses acabei relendo um diálogo primoroso, e esbarrei nisso:
― Tenho medo dessas grandes palavras ― disse Stephen ― que nos fazem tão infelizes.
O fato é que intentava me dirigir para a estante da sala para guardar o Dedalus e seus ditos desconcertantes ― não aqueles enfeixados no Ulisses, mas sim no Retrato do artista quando jovem, em que julgava estar o dito célebre sobre a História ― quando, instintivamente, percebi estar me dirigindo com o livro para a cozinha. Não, de forma alguma pensei na heresia de queimar meus livros, isso eu jamais faria, mas antes alguma coisa muito mais intrigante e reveladora: que as palavras que distingo neles, nos livros, que sorvo com tanta vontade como se fossem alimento, podem estar precisando de um fogo qualquer para aquecê-las, transformá-las, como vejo o fogo agindo lenta e misteriosamente nos alimentos, e se a cozinha e a estante ficaram tão próximas em meus movimentos é porque os dois alimentos fundiram-se no mesmo gesto ― vital. A imagem me atrai, mas não quero que as palavras queimem. O fogo traz a marca de Prometeu.

no direction home: voltando a bob dylan


... a performance mais delicada que já encontrei para Visions of Johanna:
"Ain't it just like the night to play tricks when you're tryin' to be so quiet?"

sonhando a própria angústia da História

Apesar de tudo, gosto dos meus sonhos ― eles me economizam a sessão extra de análise semanal. A maravilha da condensação: um retalho da novela, outro de conversa, outro da literatura ― e o substrato denso e indelével da vida. Indelével ― a beleza desta palavra não trai a complexidade do que nela subjaz. Fundo acima de tudo inescrutável, como um filme cujo entendimento estivesse fora de qualquer cogitação hermenêutica. O que sonhei esta noite mal cabe em palavras. Não cabe, aliás, porque pareço eu mesma, no sonho, sendo tragada por alguma coisa que pareço assistir. Ontem revisitei, em memória, o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis. Também me chegou em casa o livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de José Murilo de Carvalho. Textos aproximadamente da mesma quadra histórica, que sinto certa urgência de estudar. E o onipresente achado de Stephen Dedalus ― “A história é um pesadelo de que tento despertar-me”. Sonhar o próprio pesadelo da História, vivendo numa cidade à beira do caos, e traçar nas palavras uma tentativa de catarse desse pesadelo, pois há em curso alguma coisa estranha, e sonhar é entrever possibilidades de acessar o que o dia, mais do que nunca, está tentando negar. Não é só a questão de sonhar ― é o espanto de amanhecer com a sensação de que um mundo tão ou mais vasto que o dia foi visitado, e são tantos os feixes cruzados em umas poucas imagens que a melhor apropriação que consigo fazer desta noite é que a linguagem pode ser brutalmente subtraída de uma vida (e isso equivaleria a perder a própria vida), embora as pessoas continuem falando, falando as coisas que se dizem todo dia.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

escrever

Escrevo depois da chuva. Rasgo linhas como a chuva ― água chamada à terra pelo ciclo atmosférico ― rasga o espaço precipitando-se no chão. As palavras precipitam-se no papel, no seu papel de palavras. Qual é o papel das palavras? O papel branco ― solo ― recebe palavras cujo intento seria, aprende-se muito cedo, comunicar. Um qualquer papel recebe palavras e isso às vezes nada comunica em sua exterioridade, assim como uma chuva pode não despertar nada em quem a mira ― o que talvez seja difícil. Uma chuva pode chegar de muitas maneiras, com alarde ou silenciosamente impressentida ― às vezes, de tão mansa, percebe-se apenas que choveu, ou então que chove uma chuva tão fininha, leve, quase água a flutuar antes de tocar o inevitável solo da gravidade. Mas é como se a gravidade não existisse, e a água estivesse solenemente caindo devagar, como um hino à natureza, desejando, em seu lento tombar, que alguém a note (anote), chuva, água, espanto de que as coisas ainda estejam vivas, beirando o sublime, quando tudo à volta parece conspirar para a morte. Uma chuva assim num domingo à tarde é uma mensagem do céu. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Henry Miller: a grande pergunta

“A grande pergunta era a de sempre, aparentemente irrespondível: o que afinal eu tenho a dizer ao mundo que seja tão desesperadamente importante? O que eu tenho a dizer que já não tenha sido dito antes, e milhares de vezes, por homens infinitamente mais talentosos do que eu? Seria apenas uma coisa do ego, aquela necessidade coercitiva de ser ouvido? De que maneira eu era singular? Porque se eu não era singular, então tudo aquilo só resultaria em acrescentar mais uma unidade a uma cifra astronômica incalculável.”

MILLER, Henry. Nexus. Trad. Sergio Flaskman. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.166. 

Murilo Mendes

O TEMPO

O tempo cria um tempo
Logo abandonado pelo tempo,
Arma e desarma o braço do destino.
A metade de um tempo espera num mar sem praias,
Coalhado de cadáveres de momentos ainda azuis.
O que flui do tempo entorna os pássaros,
Atravessa a pedra e levanta os monumentos
Onde se desenrola ― o tempo espreitando ― a ópera do espaço.
Os botões da farda do tempo
São contados ― não pelo tempo.
O relojoeiro cercado de relógios
Pergunta que horas são.

O tempo passeia a música e restaura-se.
O tempo desafia a pátina dos espíritos,
Transfere o heroísmo dos heróis obsoletos,
Divulga o que nós não fomos em tempo algum.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.433-434.

História

Na confusão das referências, julgava ter lido em Walter Benjamin que a História é pássaro que põe ovos de ferro. É que o pensador alemão lançou mão de seres alados chamados anjos para falar da História:

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.” 

A imagem, dura, dos ovos de ferro na verdade é de Guimarães Rosa. Mas poderia servir para a História, voo de pássaro agrilhoado por correntes de ferro. A imagem que emerge dos olhos assustados do anjo de Klee, a partir do olhar de Benjamin, suscita pássaros engaiolados no próprio voo, pois o mar de ruínas da História não lhes oferece pouso. 

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. __. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.226. (Obras escolhidas, 1)

domingo, 11 de setembro de 2011

Dora Ferreira da Silva

O PÁSSARO

Tênue
toca a terra dura
e ascende.
No céu expande o canto
ferindo as cordas do infinito.
Nas folhas acorda um timbre
delicado.
Mas conhece a ferocidade.
Na forma se precipita
destroçando com o bico
vermes 
que a terra expulsa
sem piedade.

Sua morada é o canto
mais do que ninhos
ou a voracidade.
E sobe para um dia cair
sem ressentimento.

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.121-122.

"Sentir medo é deixar de semear por causa dos pássaros"

"Sabe por que eu nunca virei um escritor?"
"Não", respondi, surpreso de saber que ele sequer já tinha aventado a hipótese.
"Porque eu descobri quase imediatamente que não tinha nada a dizer. Eu nunca vivi de verdade, é esse todo o problema. Se você não arrisca nada, não tem como ganhar nada. Como é mesmo o ditado oriental? 'Sentir medo é deixar de semear por causa dos pássaros.' Explica tudo. Esses russos loucos que você me dá para ler, todos tiveram experiência da vida, mesmo que nunca tenham se afastado do lugar onde nasceram. Para as coisas acontecerem, é preciso haver um clima propício. E quando falta esse clima você cria. Quer dizer, se tem a genialidade. Eu jamais consegui criar nada. Só sei jogar o jogo, e jogar de acordo com as regras. A resposta para isso, se você não sabe, é a morte."

MILLER, Henry. Nexus. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.35.

John Singer Sargent, Seascape, 1875

imagem obtida aqui

De uma passagem de Nexus, Henry Miller: "Só existe um Sargent, assim como só existe um Beethoven, um Mozart, um da Vinci..."