Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 24 de dezembro de 2011

espírito natalino IV

Dessa vez fiz diferente, e pela primeira vez eu prestei atenção no sabor da rabanada. Saber e sabor andam juntíssimos.

espírito natalino III

No supermercado lotado já pela manhã ― meu Deus, como fui parar lá hoje? ―, sol escaldante, um funcionário, rapaz jovem, repondo o estoque, distraía-se do dia que promete, cantarolando Renato Russo e suavizando esse imponderável que vai no meu coração: é preciso amaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar as pessoas como se não houvesse amanhã... Já na fila do caixa presenciei um bate-boca.

la dolce vita

Óssip Mandelstam

Não posso tocar, no escuro,
Teu vulto vago e sombrio.
“Senhor!”, por erro, murmuro,
Alheio ao que balbucio.

De mim, tal uma ave enorme,
O nome de Deus se evola.
À frente, um abismo informe,
Atrás, vazia, a gaiola.

CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006. p.117.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

superlotação

As ruas estão lotadas, as lojas, os shoppings, as praças de alimentação, as pessoas. Sobra pouco espaço para a vida.

um conto de William Saroyan

O OUSADO RAPAZ DO TRAPÉZIO SUSPENSO
Tradução João Cabral de Melo Neto

1. Sono

Horizontalmente desperto entre as dimensões do universo, praticando sorrisos e alegria, sátira, o fim de tudo, de Roma e também de Babilônia, dentes trincados, um enorme calor vulcânico, as ruas de Paris, as planícies de Jericó, muito deslizar como de réptil distraído, uma exposição de aquarelas, o mar e o peixe com olhos, sinfonia, uma mesa num canto da Torre Eiffel, jazz no Teatro da Ópera, um despertador e o sapateado da condenação, conversas com uma árvore, o rio Nilo, de Cadillac cupê até Kansas, o roncar de Dostoievsky, um sol sombrio.
Este mundo, a face de alguém que existiu, a forma sem o peso, pranto sobre a neve, a branca música, uma flor ampliada ao duplo do tamanho do universo, nuvens negras, o olhar fixo da pantera enjaulada, espaços sem morte, Mr. Elliot de mangas arregaçadas torrando pão, Flauber e Guy de Maupassant, uma rima silenciosa de sentido primitivo, Finlândia, matemática altamente polida e untuosa como uma cebola verde para o dente, Jerusalém, o caminho do paradoxo.
O canto profundo de um homem, os cochilos dissimulados de alguém invisível mas vagamente conhecido, furacão no trigal, uma partida de xadrez, faça calar a rainha, o rei, Karl Franz, o negro Titanic, Mr. Chaplin chorando, Stalin, Hitler, a multidão de judeus, amanhã é segunda, nenhuma dança nas ruas.
Ó fugaz minuto de vida: acabou, o mundo está de novo presente.

2. Vigília

Ele (o sobrevivente) vestiu-se e fez a barba, olhando-se com desgosto no espelho. “Bem antipático”, pensou. Onde está minha gravata? (Ele só possuía uma.) Café e céu cinzento, o fog do Oceano Pacífico, o estrépito de um bonde de um bonde passando, gente indo à cidade, novamente a hora, o dia, prosa e poesia. Desceu rapidamente as escadas para a rua, e saiu a caminhar, começando inesperadamente a pensar: “é somente no sono que podemos saber se existimos. Somente lá, naquela morte viva, poderemos encontrar a nós mesmos e à terra distante, a Deus e aos Santos, os nomes de nossos pais, a substância de perdidos momentos; é lá que os séculos se revelam no instante, que o inconcebível se transforma no limitado, átomo tangível da eternidade.”
Saiu a caminhar na manhã, tão desperto quanto podia, dando batidas secas com os calcanhares, recebendo com os olhos a verdade superficial das ruas e das estruturas, a verdade banal da realidade. Sem que o procurasse, viu-se a cantarolar: “Com a maior facilidade voa no imenso espaço, o ousado rapaz do trapézio suspenso”,* e depois riu com toda a capacidade do ser. Estava, na verdade, uma esplêndida manhã; nublada, fria e triste, uma manhã para a vida interior; ah, Edgar Guest, que fome de tua música.
Descobriu na sarjeta uma moeda, um pêni datado de 1923, e colocando-a na palma da mão examinou-a minuciosamente, procurando lembrar-se daquele ano e pensando em Lincoln cujo perfil nela estava gravado. “Hei de comprar um automóvel”, pensou. “Hei de me vestir como um grã-fino, visitar as pensões de mulheres, beber e jantar, e voltar depois a uma vida sossegada. Ou então, colocarei a moeda na fenda de uma balança e me pesarei.”
Era bom ser pobre, e os comunistas... ― Mas era horrível ter fome. Que apetite o deles, como eram loucos por comida! Estômagos vazios. Lembrou-se de quanto ele necessitava de comida. Seu único alimento era pão, café e cigarros, e agora não tinha mais pão. Café sem pão não constituía ceia razoável, e no parque não havia ervas que servissem para se cozinhar como espinafre.
A dizer a verdade, embora já tivesse meio morto de fome, compreendia haver ainda um número infindável de livros que precisava ler antes de morrer. Lembrou-se do jovem italiano do Hospital do Brooklyn, um insignificante e doente funcionário chamado Mollica, a dizer, desesperadamente: “como gostaria de ver a Califórnia, ainda uma vez, antes de morrer”, e pensou com gravidade, “preciso ao menos ler Hamlet de novo; ou talvez Huckleberry Finn”.
Foi então que tornou-se inteiramente lúcido à ideia de morte. A lucidez, agora, se assemelhava a um estado de choque prolongado. “A um rapaz era muito mais fácil morrer discretamente”, pensou, e ele já estava meio morto de fome. A água e a prosa eram boas, preenchiam muito espaço inorgânico, mas eram insuficientes. Se ao menos houvesse algum trabalho que pudesse fazer por dinheiro, algum trabalho vulgar, do tipo chamado comércio. Se ao menos lhe fosse permitido sentar-se a uma cadeira, e ali, todo o dia, somar cifras, subtrair, multiplicar, dividir, talvez então não viesse a morrer de fome. Poderia comprar comida, todas as espécies de comida: iguarias nunca provadas da Noruega, Itália, França; carne de vaca preparada de todas as maneiras, carneiro, peixe, queijo; uvas, figos, peras, maçãs, melões, coisas que ele adoraria depois de satisfeita sua fome. Numa travessa, colocaria um cacho de uvas vermelhas entre dois figos negros, uma grande pêra amarela e uma maçã verde. Durante horas, levaria ao nariz uma fatia de melão. Compraria grandes formas de pão francês, legumes de todas as qualidades, comida; haveria de comprar vida.
De uma elevação divisou a cidade que se erguia a leste, majestosamente, com suas grandes torres, compacta à sua maneira, e de repente sentiu-se fora de tudo aquilo, quase, definitivamente convencido, persuadido mesmo de que jamais conseguiria ser admitido naquele mundo injusto, ou melhor, naqueles tempos injustos, muito embora tentasse o que quisesse... e agora, um rapaz de 22 anos estava sendo permanentemente rejeitado desse mundo. Este pensamento não era de entristecer. Disse consigo mesmo: “muito em breve terei de preencher um pedido de Licença para Viver”. Aceitou a ideia de morrer sem piedade de si mesmo ou dos homens, imaginando que ao menos dormiria ainda uma noite. O aluguel de um outro dia estava pago: contudo, haveria sempre outro amanhã. E além disso, podia ir onde vão os homens sem lar.
Podia mesmo visitar o Exército da Salvação ― entoar hinos a Deus e a Jesus (desafeto de minha alma), ser salvo, comer e dormir. Mas ele bem sabia que não iria lá. Sua vida era uma vida privada. Não desejava perder essa qualidade. Qualquer outra solução seria melhor.
“Pelo ar, no trapézio suspenso”, murmurou seu subconsciente. Era divertido, terrivelmente engraçado. Um trapézio até Deus ou até nada, um trapézio suspenso em alguma eternidade; rezou objetivamente pedindo coragem para empreender graciosamente aquele voo.
― Tenho um cêntimo ― disse. ― Uma moeda americana. Mais tarde eu a polirei até que venha a brilhar como um sol e decifrarei suas palavras.
Caminhava agora na própria cidade, entre gente viva. Havia um ou dois lugares aonde ir. Entreviu sua imagem no vidro das vitrinas das lojas e ficou desapontado com sua aparência. Não parecia absolutamente tão disposto como se sentia; parecia, na verdade, um débil enfermo, alguém que sofresse de cada parte do corpo, do pescoço, ombros, braços, tórax e joelhos. Isso nunca, disse, e com esforço recompôs as peças desconjuntadas, tornando-se tensa e artificialmente ereto e sólido.
Com magnífica disciplina, recusando-se mesmo a relanceá-los, passou por numerosos restaurantes, e chegando, por fim, a determinado edifício, nele entrou. Um elevador levou-o ao sétimo andar, onde ele, cruzando um vestíbulo e abrindo uma porta, penetrou no escritório de uma agência de empregos. Já uns vinte rapazes se achavam na sala; descobriu um canto onde, de pé, aguardou sua vez de ser entrevistado. Por fim, este grande privilégio lhe foi concedido e foi interrogado por uma magra e estouvada senhorita de uns cinquenta anos.
― Agora me diga ― falou ela ―, o que sabe fazer?
Sentiu-se embaraçado.
― Sei escrever ― disse enfaticamente.
― Quer dizer... sua letra é boa? É isso? ― disse a idosa senhorita.
― Bem... é ― replicou ele. ― Mas o que quero dizer é que sei escrever.
― Escrever o quê? ― disse a moça, quase com raiva.
― Prosa ― respondeu ele simplesmente.
Houve uma pausa. Por fim a moça disse:
― Sabe escrever à máquina?
― Naturalmente ― disse o rapaz.
― Está bem ―  continuou a moça, ficando com seu endereço ―; estaremos em contato com o senhor. Esta manhã não há nada, absolutamente nada.
A mesma coisa aconteceu em outra agência; apenas ele foi interrogado por um rapaz pretensioso, extremamente parecido com um porco. Das agências ele foi à administração das grandes lojas; havia um grande luxo, alguma humilhação de sua parte e finalmente a informação de que não podia ser aproveitado. Não se sentiu aborrecido, e por mais estranho que pareça nem mesmo sentiu que estava pessoalmente envolvido com toda aquela maluquice. Ele era um ser vivo, que tinha necessidade de dinheiro com que continuar a sê-lo, e nenhum meio havia de consegui-lo senão trabalhando para isso; mas não havia trabalho. Tratava-se simplesmente de um problema abstrato que pela última vez tentara resolver. Mas agora se alegrava de ver o assunto liquidado.
Começou a perceber toda a precisão do curso de sua vida. exceto por momentos, ela nunca tivera uma direção definida, mas agora, no último minuto, ele determinara que ela devia ser tão pouco imprecisa quanto possível.
Em seu caminho para a A.C.M., passou por cafés e restaurantes sem conta, e lá arranjando papel e tinta começou a preencher sua inscrição. Durante uma hora preparou esse documento, e depois, devido ao ar abafado e à fome, sentiu subitamente que ia desmaiar. Sentia-se como se nadasse para fora de si mesmo, em grandes braçadas, e precipitadamente abandonou o edifício. No parque Central, enquanto se encaminhava para o edifício da Biblioteca Pública, bebeu quase um litro de água e sentiu-se reconfortado. No centro do passeio de tijolos, um ancião cercado de gaivotas, pombos e pintarroxos tirava um punhado de migalhas de pão de um grande saco de papel atirando-as aos pássaros num elegante movimento.
Secretamente sentiu-se impelido a pedir ao velho uma porção das migalhas de pão mas não deixou mesmo que tal pensamento se tornasse consciente. Entrou na Biblioteca Pública e, durante uma hora, leu Proust. Mas sentindo-se novamente como se nadasse para fora de si, apressou-se em sair. Na fonte do parque bebeu mais água e começou o longo caminho para seu quarto.
“Dormirei um pouco mais”, pensou. “Não há outra coisa a fazer.” Compreendia agora estar muito cansado e fraco para procurar enganar-se a respeito de seu estado. Todavia sua razão parecia ainda, de algum modo, flexível e alerta. Ela persistia, como se fosse uma entidade diversa dele, em inventar impertinentes brincadeiras a propósito de seu sofrimento real. Às primeiras horas da tarde chegou a seu quarto e imediatamente preparou café no pequeno fogareiro a gás. Não havia leite na lata e a meia libra de açúcar comprada uma semana antes se havia acabado; tomou uma xícara de líquido quente e negro, sentando-se no leito e sorrindo.
Da Associação Cristã de Moços ele furtara umas 12 folhas de papel de carta com as quais pensava terminar sua inscrição, mas a simples ideia de escrever lhe era agora desagradável. Nada tinha a dizer. Começou a polir o pêni achado naquela manhã, e esse ato absurdo como que lhe deu um grande prazer. Nenhuma moeda americana se podia fazer brilhar tanto como um pêni. Quantos daqueles precisaria para continuar vivendo? Não haveria mais nada que pudesse vender? Olhou em volta o quarto desguarnecido. Nada. Seu relógio se fora; seus livros também. Todos aqueles belos livros; por nove deles recebera oitenta e cinco cêntimos. Sentiu-se incomodado e envergonhado de se haver separado de seus livros. Seu melhor terno fora vendido por dois dólares, mas isso compreendia. Ele não ligava absolutamente para isso de roupas. Mas os livros... Aí o caso era diferente. Deixava-o exasperado pensar que não havia respeito pelas pessoas que escrevem.
Colocou a reluzente moeda sobre a mesa, contemplando-a com o prazer de um avarento. Quão lindamente ela sorri ― disse. Sem que as lesse passou os olhos sobre as palavras E Pluribus Unun Um Cêntimo ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, e virando-a contemplou Lincoln e as palavras In God We Trust Liberty 1923. “Como é lindo”, pensou.
Começou a ficar sonolento e sentiu um angustiante mal-estar invadir seu sangue, uma impressão de náusea e desintegração. Perturbado, pôs-se de pé ao lado da cama, imaginando que nada lhe restava fazer senão dormir. Já se sentia dando aquelas grandes braçadas através de uma zona fluída do universo, nadando em direção às origens. Caiu de bruços sobre a cama, dizendo: preciso ao menos dar a moeda a alguma criança. Qualquer criança pode comprar um número sem fim de coisas com um pêni.
Então, rapidamente, elegantemente, com a graça do rapaz do trapézio suspenso, afastou-se de seu próprio corpo. Durante um minuto que lhe pareceu sem fim, ele foi todas as coisas ao mesmo tempo: pássaro, peixe, roedor, réptil, homem. Um mar de gravura ondulava diante dele, escuro e sem fim. A cidade ardia. Multidões aglomeradas revoltavam-se. O mundo se afastava girando, e vendo que se afastava também, voltou sua face perdida para o céu vazio e tornou-se sem sonhos, sem vida, perfeito.

Contos norte-americanos: os clássicos. Org. Vinicius de Moraes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p.498-503. * Nota do tradutor: “The daring young man on the flying trapeze.” Famosa canção popular americana.

millôr fernandes: fábulas fabulosas III

OS GASTOS DISPENSÁVEIS

Estava o homem dentro da mata, cortando a sua arvorezinha, quando ouviu o grito de socorro: “Au secours! Souvez-moi!” Imediatamente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, pôs-se a correr. Evidentemente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, na direção contrária ao grito do socorro. Mas, por isso ou por aquilo, foi dar exatamente no local de onde partiam os gritos de socorro. Numa pequena clareira se lhe deparou então um quadro horrível: um homem, ou melhor, um camponês, lutando braço a braço com uma fera. Sentada numa pedra, com um rifle na mão, uma mulher, aparentemente mulher do camponês, contemplava a luta, pitando o seu pito. Sem saber como agir o homem avançou para os dois que lutavam, logo recuou, logo tentou avançar de novo, recuou de novo e, sem ter o que fazer, atarantado, voltou-se para a mulher e berrou: “Que faz você aí, mulher dos infernos? Por que fica assim, sem fazer nada? Por que não atira? Vamos, atire!” E a mulher, pitando seu pito, respondeu então: “Calma. Calma, homem! Pode ser que a fera me economize uma bala.”

MORAL: Os nossos pontos de vista não são necessariamente os alheios.

 Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.41-42.

millôr fernandes: fábulas fabulosas II

HIERARQUIA

Diz que um leão enorme ia andando chateado, não muito rei dos animais, porque tinha acabado de brigar com a mulher e esta lhe dissera poucas e boas. Ainda com as palavras da mulher o aborrecendo o leão subitamente se defrontou com um pequeno rato, o ratinho mais menos que ele já tinha visto. Pisou-lhe a cauda e, enquanto o rato forçava inutilmente pra escapar, o leão gritou: "Miserável criatura, estúpida, ínfima, vil, torpe: não conheço na criação nada mais insignificante e nojento. Vou te deixar com vida apenas para que você possa sofrer toda a humilhação do que lhe disse, você, desgraçado, inferior, mesquinho, rato!" E soltou-o. O rato correu o mais que pôde, mas, quando já estava a salvo, gritou pro leão: "Será que Vossa Excelência poderia escrever isso pra mim? Vou me encontrar com uma lesma que eu conheço e quero repetir isso pra ela com as mesmas palavras!"

MORAL: Afinal ninguém é tão inferior assim.
SUBMORAL: Nem tão superior, por falar nisso.

Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.110.

millôr fernandes: fábulas fabulosas I

A MORTE DA COLIBRI

Morreu a colibri. Morreu rápido, fácil, sem dores ou aflições. Morreu como um passarinho. Sua única tristeza, ao partir, parecia ser a certeza de que, como todos os colibris, o esposo morreria assim que ela abandonasse o mundo. Pois é sabido que um colibri não pode viver sem a sua companheira. Jamais houve um colibri que conseguisse resistir à morte da fêmea, eis a suprema grandeza de um amor. Mas como a colibri sabia disso, isso também sabia o dono do colibri viúvo. E, assim que a colibri morreu, o esperto dono, rapidamente, colocou diante do colibri um espelho perfeitamente polido para que a avezinha não sentisse a falta da companheira. E como tal se buscava, tal se deu. O colibri, que era míope ou narcisista, vendo-se refletido no espelho, considerou duplicada a sua vida e, assim, continuou vivendo, contrariando a lenda e a ornitologia. Mas lá veio o dia fatal em que um moleque atirou uma pedra na gaiola, tentando acertar o colibri. Não acertou no colibri mas acertou no espelho. E logo, num minuto, olhando em volta, atônito, apalermado, o colibri entrou em pânico, em agonia, e sucumbiu. O médico chegou apenas a tempo de constatar a morte e declarar a causa: morreu de espelho partido.

MORAL: Ninguém pode viver sem o reflexo da própria imagem.


Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.27-28.

Álvaro de Campos

Não sei se os astros mandam neste mundo,
Nem se as cartas ―
As de jogar ou as de Tarot ―
Podem revelar qualquer coisa.

Não sei se deitando dados
Se chega a qualquer conclusão.
Mas também não sei
Se vivendo como o comum dos homens
Se atinge qualquer coisa.

Sim, não sei
Se hei-de acreditar neste sol de todos os dias,
Cuja autenticidade ninguém me garante,
Ou se não será melhor, por melhor ou por mais cómodo,
Acreditar em qualquer outro sol ―
Que ilumine até de noite, ―
Qualquer profundidade luminosa das coisas
De que não percebo nada...

Por enquanto...
(Vamos devagar)
Por enquanto
Tenho o corrimão da escada absolutamente seguro,
Seguro com a mão ―
O corrimão que não me pertence
E apoiado ao qual ascendo...
Sim... Ascendo...
Ascendo até isto:
Não sei se os astros mandam neste mundo...

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.484-485.

The Piano .||.|.||.|.|.||. (curta)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

em sonho

Foi pouco antes de dormir, naquela passagem que ainda é vigília mas também o desmaiar da consciência que antecede o sono. Então o susto se deu. Menos que susto, mais um espanto. Uma lembrança desagradável, qual um esgar da consciência, ou do inconsciente invadindo a consciência antes da hora, do momento do sonho. Entre a vigília e o sonho, a surpresa de algo muito invasivo, como se fosse um aviso. O arco da noite se completa, e pela manhã outra surpresa, algo insólito, gerando em mim uma interrogação. Que encontrou ressonância no acontecido antes de dormir, uma coisa lançando luz, ou sombras, sobre a outra. Mas não deixa de ser uma libertação. 

espírito natalino II

Hoje, na altura da Uruguaiana, naquela confusão de lojas próximo à estação do metrô, uma mulher, levando numa mão uma sacola e na outra uma criança, vinha em disparada em meio à multidão gritando “Pega! Pega!”, tentando alcançar um moleque que fugia a passos largos entre as pessoas, por ter afanado seu celular. Voltei-me a tempo de ver o tumulto se formando e pessoas dispostas a atender ao pedido da mulher. Não tem nada a ver com o post anterior, mas eu me dirigia justamente para o Palácio das Ferramentas.

espírito natalino I

Um anúncio veiculado pela TV chamou-me a atenção. Dentro daquele padrão das propagandas de Natal, aparecem o casal e o casal de filhos confraternizando no lar, enquanto a esposa fala das facilidades de comprar os presentes na loja tal. De repente entra o anúncio de uma furadeira.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

calor

Inflamação tem a ver com fogo. Por isso a região inflamada fica quente: algo nela inflamou-se, protestou, saiu dos eixos, resolveu chamar atenção sobre si. 

kurz und schön (animação)

eu vi o sol morrendo...

Ontem, enquanto voltava, presenciei, pela tangente, um por do sol nunca antes assim entrevisto. Eu tinha, do ônibus, uma fração de paisagem que se movia em lentidão, e então, quando parecia que o sol já havia se posto, percebi, entre ou além dos prédios, um amarelo intenso no céu, filtrado pelas árvores, que pareciam cintilar. Claro que o contraste imediato foi a iluminação artificial do Natal, reservada para a noite. Aquela cintilação momentânea, criada por uma conjunção especial de horário, lugar, olhar, disposição da paisagem, de um amarelo ouro vibrante e intenso, era um presente da natureza a quem se dispusesse a tirar os olhos do aqui e agora. Pensei também que fenômeno tão belo não combinava com a palavra crepúsculo.

Dora Ferreira da Silva

DISSE A SOMBRA...

Disse a sombra ao sol: “Eu passo”
E ele ― rubicundo de mormaço ―
responde: “Mais devagar também caminho
enquanto alongas tuas pernas desmedidas.”

Ao meio-dia diz a sombra: “Em ti dormito,
oculta em teu novelo de verdades
tão claras, que o olhar dos homens velas.”

“Em mim dormitas?” diz o sol zangado.
“E eu pensando ser a luz tamanha
que sombra alguma em  mim repousaria
antes da negra noite apagar meu dia.”

Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.334.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

rio de janeiro

Hoje escolhi um trajeto alternativo para voltar para casa, em parte por falta de disposição de me dirigir até o Centro, em parte porque me atraía a ideia de passar pela orla. Levei três horas e meia para chegar em casa. Um simples Natal traz o caos para o trânsito da cidade. As autoridades estão assegurando que vão resolver os problemas de infra-estrutura até os dois eventos esportivos que a cidade vai sediar. Isso é bastante questionável. As ruas e avenidas desta cidade ainda vivem no tempo da Bossa Nova, para que a garota de Ipanema possa passar devagar. Um enorme congestionamento se forma na orla para que os veículos possam entrar na Avenida Niemayer. São cinco pistas de dois afluxos que precisam virar uma pista única, numa espécie de funil sem sinalização. Os veículos vão se amontoando. Depois disso, novas retenções. Na altura do bairro classe média alta que vem depois do elevado do Joá, ouvi o motorista dizer que não entendia como as pessoas conseguiam viver lá, pois estão presas pelo trânsito. Palavras dele: prisão domiciliar. Estava anestesiada pela lentidão, levei alguns segundos para entender. Apesar de tudo, como a geografia desta cidade é bela! Não as praias lotadas, um tanto largadas, com um jeitão de improviso. A geografia mesmo, as formas da natureza em contraste com algumas soluções bem-vindas de urbanização. Algumas. 

trainspotting


E por falar em cinema, comecei a assistir Trainspotting, mas tive que dar o pause logo numa das cenas iniciais. Estava de estômago cheio. O filme terá que aguardar na fila uma outra oportunidade. 

cinema

Ao ver proliferar em blogs e sites especializados em cinema as listas dos mais mais de 2011, dou-me conta de que não fui, metonimicamente falando, ao cinema neste ano que ora finda. Nem tentei trazê-lo até mim, assistindo a filmes e filmes em casa. Assisti sim a muita coisa, desde que não se estabeleça como parâmetro os longas. Vi curtas como nunca, e o blog é um testemunho disso. Pequenos prazeres, sem o desconforto da bilheteria e do barulho das sacolas de pipoca. Dos poucos longas a que assisti, em casa, marcou-me em particular A Liberdade é Azul, bem como ter revisto Minha Vida de Cachorro. Há muitos longas a que quero assistir, mas isso não tem nada a ver com os filmes que a indústria do cinema escolhe anualmente para que eu veja. Há filmes incríveis ao alcance da mão (cada um tem o seu rol de imperdíveis ou obrigatórios), mas posso pensar no cinema como uma variante da leitura. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

temporal

Lá fora a natureza está fazendo barulho, anunciando-se por relâmpagos, trovões e chuva forte. E então penso como é boa a circunstância de estar em casa no momento em que chove com essa intensidade, usufruindo o lado bom da chuva (considerando que, numa cidade... aquilo que todo mundo já sabe). 

pronome indefinido

Sei ser ninguém ― enunciado de duplo sentido, agora o percebo, depois de ter escrito. Ser ninguém é um aprendizado. Sem escrever, a sensação de nulidade é tão forte que me vejo compelida a preencher linhas com palavras. A brancura do papel até pede nobreza, e então, reconhecendo minha nulidade, eu deveria silenciar. Mas é a nulidade que me impulsiona para a escrita. Penso às vezes no que alcançaria se conseguisse verdadeiramente escrever.

Emily Dickinson

Deus tudo fez por um motivo,
E um plano deu às almas,
Nossa inferência é prematura,
Nossas premissas falsas.


God made no act without a cause,
Nor heart without an aim,
Our inference is premature,
Our premises to blame.

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.154-155.

domingo, 18 de dezembro de 2011

juízo final por luiz melodia

chuva...

Amanheceu chovendo, leve, leve, quase um murmúrio da natureza, trazendo-me aquela sensação única de mansidão que percebo na chuva, na chuva que trago em mim... E esse murmúrio equivale ao que escrevi ontem falando da brisa, senão à própria brisa, à leveza que nela entrevi ao falar das estações. A deusa me ouviu.