Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 2 de março de 2013
inconsolável
O pior de constatar-se cometendo os mesmos (graves)
erros é perceber que há alguma coisa de fundo, pouco perceptível e discernível,
que parece zombar das tentativas de que a vida se renove.
Fernando Pessoa
DIFERENÇA
DE PESSOA
Que
lindo dia o que vemos!
Mas,
como estes tempos vão,
É bom
que não confiemos...
É melhor
dizer que temos,
Não
um dia de verão,
Mas
um dia de veremos.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.506.
sexta-feira, 1 de março de 2013
Fernando Pessoa
Não
digas nada a quem te disse tudo —
Tudo, esse tudo que se nunca diz…
Essas palavras feitas do veludo
A que se não sabe o matiz.
Tudo, esse tudo que se nunca diz…
Essas palavras feitas do veludo
A que se não sabe o matiz.
Não
digas nada a quem te deu a alma…
Que a alma não se dá. O confessar
É feito só para se obter a calma
De nos ouvirmos a falar.
Que a alma não se dá. O confessar
É feito só para se obter a calma
De nos ouvirmos a falar.
Tudo
é inútil e também mentira.
É um pião que um garoto na estrada
Deita só para ver como ele gira.
E ele gira. Não digas nada.
É um pião que um garoto na estrada
Deita só para ver como ele gira.
E ele gira. Não digas nada.
Fernando
Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo, Companhia
das Letras, 2009, p.380.
José Paulo Paes
TERMO DE RESPONSABILIDADE
mais nada
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício
já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita
coração
silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício
já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita
coração
silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!
José
Paulo Paes. Poesia completa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.218.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
finalzinho da tarde
Um temporal surpreendeu ontem quem estava na cidade.
Eu estava a própria Macabéa: fazendo chover e dentro de uma loja de
ferramentas. Quando a chuva deu trégua, saí em busca de uma lanchonete, haja
vista a dificuldade de retornar para casa ou qualquer lugar naquele momento,
depois da água toda que caiu ― mas, ao mesmo tempo, que chuva, suavizando o
contorno de um dia excessivamente quente e intenso. Então aconteceu uma coisa
que não é inédita comigo naquela geografia: seja pela confusão do momento, seja
pelo que ia comigo, eu saí mais ou menos em direção à rua da Colombo,
alternativamente a rua do Rosário, no
outro lado da Rio Branco, e fui andando, me orientando pelo que conheço do
centro da cidade, mas pouco depois percebi que havia retornado ao ponto de que
parti, nem mais nem menos, pela mesma rua. Seria redundante dizer “sem
percebê-lo”. Não é, porque nada ilude e confunde mais que a aparência que as
coisas por vezes tomam. Elas me diziam que eu estava indo para algum lugar,
embora faltassem referências mais concretas sobre os lugares que eu tinha em
vista, e mesmo a determinação firme de chegar até eles. Sobretudo as aparências,
travestidas de evidências, me diziam que eu estava seguindo em frente,
progredindo, não desenhando com meus passos um círculo. Percebido o círculo,
não havia nada mais a fazer senão rir e começar de novo, agora prevenida das
armadilhas daquela geografia. Há tanta bobagem que se diz em torno do errare humanum est.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
domingo, 24 de fevereiro de 2013
R I S C A D O (Gustavo Pizzi, Brasil, 2010)
“Riscado é um filme agradabilíssimo
de se assistir simplesmente por ter uma estória interessante e bem
desenvolvida; por nos dar a conhecer uma personagem por quem sentiremos empatia
e que gostaremos de acompanhar até o final. Mas o que parece fazer de Riscado um filme
ainda mais bonito é, justamente, a maneira como ele afirma o cinema: o filme,
afinal, existe.” E a trajetória da atriz Karine Teles é delicada, bonita, inspiradora.
Insolação (Felipe Hirsch e Daniela Thomas, Brasil, 2009)
“Insolação” também poderia se chamar “Inanição”: as
personagens vão morrendo aos poucos de inanição em sua busca de amor, pelo amor.
Trata-se de um filme de estrutura narrativa tênue, quase inexistente, pontuado pela poesia e pela digressão existencial, como se o
sentir fosse mais importante que o contar. Personagens passando por uma dissolução emocional cujo fundo é uma
paisagem árida, inóspita, abrasada pelo sol e pela solidão, uma arquitetura que
termina por esgarçar o frágil tecido daquelas subjetividades errantes.
Alejandra Pizarnik
LA PALABRA QUE SANA
Esperando que un
mundo sea desenterrado por el lenguaje, alguien canta el lugar en que se forma
el silencio. Luego comprobará que no porque se muestre furioso existe el mar,
ni tampoco el mundo. Por eso cada palabra dice lo que dice y además más y otra
cosa.
Alejandra Pizarnik. Poesía
completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.283.
brasil: infância mutilada
À leitura da matéria
publicada n’O Globo de hoje, “Filhos de presos torturados
carregam a dor do passado”, foi inevitável a
comoção, porque violência contra criança ultrapassa qualquer fronteira da
razão ou do entendimento. Uma dessas crianças, Carlos Alexandre Azevedo, submetido à violência dos generais quando tinha apenas 1
ano e 8 meses de idade, suicidou-se na última semana. A mim, nascida em 68,
ocorre-me ter então vivido uma outra face da moeda, passando a infância num
interior rural anônimo, anódino, vazio de experiências e de poucas
expectativas, e que bem depois entendi como também uma forma perversa de fazer
a repressão acontecer, porque não saber de nada é quase nada saber.
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