Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 8 de setembro de 2012

Álvaro de Campos

Através do ruído do café cheio de gente
Chega-me a brisa que passa pelo convés
Nas longas viagens, no alto mar, no verão
Perto dos trópicos (no amontoado nocturno do navio ―
Sacudido regularmente pela hélice palpitante ―
Vejo passar os uniformes brancos dos oficiais de bordo).
E essa brisa traz um ruído de mar-alto, pluromar
E a nossa civilização não pertence à minha reminiscência.

PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. Ed. Teresa Rita Lopes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.100.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

acerca do dia da independência

Tateando, tateando, se chega a um lugar de liberdade. Eu reconheço muitos senhores subjacentes aos movimentos que faço, o que já é uma forma de driblá-los, destituí-los do lugar que ocupam. Da soberania nacional pouco sei, não sou muito de acreditar em ficções políticas. Já a ficção de ter um contorno subjetivo a que denomino “eu”, dessa ficção eu preciso até mesmo para poder escrever esta frase. 

hoje a lembrança dessa música veio como água mansa

alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho...

para o dia de hoje

Ah, que penitenciária os desejos!
Que manicômio o sentido da vida!
Álvaro de Campos

respiração da palavra, respiração da vida

Ler, sem um qualquer desdobramento, traz uma sensação de intoxicação. Cada um precisa encontrar sua maneira de desintoxicar-se das leituras que fez/faz. De uma palavra a um livro. Não importa quantas camadas irão permear o movimento, aliás contínuo, de produção de algum tipo de saber. É preciso estar atento a esse movimento, deixá-lo respirar, deixar que as palavras brotem, ganhem corpo, vida. Só assim a própria vida pode respirar ― sem travas e amarras.

desejo da chuva

Esta noite choveu nos meus sonhos. Estava quase tudo lá, numa sucessão fantástica de imagens.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sebastião Uchoa Leite

INSÔNIA RESPIRATÓRIA

Antes nunca
Ouvira o invisível poema
Do respirar: não
Ouvia nada
Só o silêncio dos órgãos
Mas o segredo da vida
Era isso
Quando ninguém
Se lembra do corpo
Que de fato
É feito da mesma matéria
Do sono

LEITE, Sebastião Uchoa. Ciranda de poesia. Org. Franklin Alves Dassie. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p.63.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

um verso acrescentado ao poema anterior

... para talhar na rocha / a solidão / da poesia.

Orides Fontela

NOTÍCIA

Não mais sabemos do barco
mas há sempre um náufrago:
um que sobrevive
ao barco e a si mesmo
para talhar na rocha
a solidão.

FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.41.

edward hopper: rocky sea shore (para mirar sem pressa)

um acontecimento quase vazio

Ontem vivi algo insólito. Ao abrir a carteira para pagar um kit de escovas de dente numa farmácia, tomei um susto ao não encontrar o dinheiro que deveria estar ali ― seria o secreto receito de ficar de repente sem ele? A caixa da farmácia ouviu minha exclamação, viu meu desconcerto, e deve ter engendrado lá suas hipóteses.
Tentei ainda procurar, mas o dinheiro não estava em nenhum lugar diferente do usual, de forma que alguma coisa tinha acontecido. Enquanto vasculhava mentalmente as possibilidades e pagava no débito, comecei a rememorar meus passos para tentar flagrar o momento em que o dinheiro tinha sumido. Tinha sido um dia corrido, naquela tentativa de fazer várias coisas numa viagem só, de ida e volta ao centro e à zona sul.
Fui rememorando e, de imediato, descartei a possibilidade de ter sido assaltada, afinal o primeiro lugar em que procurei o dinheiro foi a carteira, que estava dentro da bolsa, e bolsa e carteira continuavam ali. Então poderia ter simplesmente perdido, ao, na pressa, colocar o dinheiro em lugar diferente do usual. Mas em que situação eu tinha manuseado o dinheiro pela última vez antes da farmácia? Quanto dinheiro afinal estava faltando? Havia ainda quatro reais na carteira, além do cartão do metrô e do bilhete único, que garantiam transporte de volta até o centro, pelo menos.
Ainda na zona sul, veio o estalo, a única possibilidade que fazia mais sentido em relação aos meus movimentos: a atendente do caixa do lugar em que tinha almoçado havia se esquecido de me dar o troco, ou eu me esquecido de pegar. Eu não cheguei a colocar o dinheiro na carteira. Tentei me lembrar do momento do almoço, montando o prato (customizando a salada, como disse um dos funcionários) e depois estendendo a nota de cinquenta reais para a atendente do caixa, antes do meu prato ficar pronto. Nesse momento, pedi também uma água mineral. De fato, não me era totalmente certa a lembrança de ter recebido o troco, embora também fosse possível tê-lo recebido e, na distração do momento, tê-lo perdido no momento de me encaminhar para mesa. Nunca vou conseguir ter certeza, mas foi ali que perdi a grande fortuna de trinta reais.
Então, antes de aceitar que eu, tão cuidadosa, tenha me distraído e perdido de bobeira o dinheiro, ocorreu-me a ideia delirante de voltar ao estabelecimento e dizer que meu troco não tinha sido devolvido. A ideia relampejou no meu cérebro, e foi logo descartada, pela evidente inviabilidade e falta de sentido. Em adição, por que se preocupar tanto com uma (pequena) importância perdida? Explicitamente perdida? Primeiramente porque há muitas outras formas de perder dinheiro, sob a forma aparente de troca, via consumo: dinheiro vai, mercadoria vem. Segundo que é preciso aceitar que também se perde, inclusive dinheiro. Mas ainda não tinha acabado.
Já no centro da cidade veio o estalo decisivo, e que é a justificava desse texto, da narração de um fato em si sem importância. Ainda pensando na minha distração, percebi que não tinha sido tão ruim assim a atendente não me ter dado o troco. Quantas vezes dei e recebi o troco? Afinal essa tem sido a praxe, dar o troco, não deixar de revidar, de devolver na mesma moeda. Então se alguém deixa de me dar do troco, talvez esteja me fazendo um bem, assim como eu, a mim e ao outro, quando desisto de revidar, de mostrar que sou inteligente e percebi muito bem a ofensa, faça-me o favor etc. etc. Não só quero ter o desprendimento de poder deixar de dar o troco como, se puder e conseguir, dar a outra face, para não cair nas armadilhas dos acontecimentos vazios.

de corpo e alma

Há poucos lugares mais ridículos, se é que há, que uma academia de ginástica. Pessoas submetendo-se cegamente ao espelho (um paradoxo?). No entanto, um médico mandou-me fazer atividade física, porque o colesterol subiu. Um outro constatou tendência para a perda de cálcio, e remeteu-me para o mesmo lugar. Sempre fui sedentária, de forma que qualquer atividade física que vá fazer a essa altura da vida envolve uma ampla e paciente negociação com o corpo perder dores cuidando para não ganhar outras. É o mínimo que se pode tentar fazer, e talvez seja suficiente. Comecei falando do corpo, mas agora, aqui, já é outra coisa.

palavra roubada

Tenho vivido de pequenos surtos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

poema sonhado por uma das personagens de respiração artificial

Sou
o equilibrista que
no ar caminha
descalço
sobre um arame
de farpas.

kafka

Um livro precisa decantar no leitor, precisa, nas suas muitas camadas, permear-se àquelas que encontrar no leitor. Desse encontro nascerá talvez uma nova subjetividade, ou novas possibilidades subjetivas. Ler continua sendo tão enigmático quanto escrever.

diz o filósofo tardewski em respiração artificial:

"Prefiro ser um fracassado a ser um cúmplice." (p.184)

lua azul

Sonhei com a lua azul. Azul mesmo, bonita, atipicamente próxima, quase ao alcance das mãos. Quando me ocorreu apanhar a máquina para registrar, complicações afetivas familiares (ou familiares afetivas) retardaram ou truncaram meu movimento, de forma que, de posse da máquina, a lua já era outra, ou a mesma de sempre, pairando distante no céu. Bastidores: pensei tanto em escrever sobre a lua azul por esses dias que uma imagem onírica acabou me impelindo a fazê-lo.

Murilo Mendes

TEMAS ETERNOS

Há sempre um amor procurando seu nome
Na solidão do livro dos tempos.

Há sempre uma veste nupcial
Pendendo da guilhotina da noite.

Há sempre restos do Minotauro
A escurecer os campos tranquilos.

Há sempre um olhar espiando o horizonte,
Um olhar que não foi visto.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.345.

domingo, 2 de setembro de 2012

à moda de orides fontela

MAIS DO QUE JOGO DE PALAVRAS

O que eu sinto eu não ajo.
O que ajo não penso.
O que penso não sinto.
Do que sei sou ignorante.
Do que sinto não ignoro.
Não me entendo
e ajo como se me entendesse.

(Clarice Lispector, A descoberta do mundo)

gratidão do corpo

Ontem fui a uma aula de alongamento seguida de pilates, um bem-estar inédito, diferente. A professora, maravilhosa. Alguma coisa ali se fazendo, diferente da ordem da razão, como se o corpo agradecesse por essa forma de carinho. Essa semana o médico me falou sobre a questão dos meus ossos, e pediu que eu levasse a sério o lance da atividade física. Em casa não consigo muito, mas na academia, espaço coletivo, eu me animo. Essa coisa da gratidão do corpo é diferente de tudo: e é também uma espécie de limiar. Estou divagando, mas são coisas que gostaria de entender.