Para os momentos de grandes ou pequenas angústias: poesia. Porque o movimento é contínuo dentro da angústia, esfacela, desintegra. E o que seria insignificante de repente salta ao olhar e exige atenção, enquanto de insignificância em insignificância caminha-se léguas na errância. O que é de fato importante? A importância das coisas é dada pelo olhar que as enxerga: enxergá-las é já admitir sua importância, mesmo quando aparentemente elas se fizeram ver por si mesmas. A minúcia do olhar pode obliterar a largueza da percepção. Quando o céu está nublado, não é possível ver as estrelas. A poesia é um modo de enxergar através das nuvens.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sábado, 28 de maio de 2011
Lizette Inzunza, Sola Frente ao Mar: (a partir de um sonho): o mar
Lizette Inzunza, Sola Frente ao Mar
[imagem obtida aqui]
“Es en la pintura de Lizette Inzunza que lo femenino puede expresarse en diferentes dimensiones; desde la fragilidad de una flor, la aspereza del cactus, el aromático y picante sabor de unos chiles; hasta el tenue y etéreo roce de las alas de un ángel, la mujer-niña que espera respuestas del mar, la sirena que se entrega confiada a su destino, la que padece el tormento de la duda o el pecado: todas las mujeres una sola; rodeada siempre por la naturaleza, al punto que se funde con ella.” ( María Iliana Hernández Partida, "Mujer, realidad y sueño").
sexta-feira, 27 de maio de 2011
silêncio
O silêncio da casa, após uma inacreditável sexta-feira de muitos ruídos. Eu, o silêncio e as palavras. Ao longe, o ruído de um avião. Próximos, ruídos da rua. Aprecio deveras o silêncio. Ao mesmo tempo, é-me inevitável fazer alguma espécie de barulho, por exemplo escrever. Escrever é romper com o silêncio, mesmo quando ele é desejado. Para o burburinho do mundo é necessário desenvolver uma espécie de proteção acústica interna, tal como a descreve Paulo Mendes Campos em seu esplêndido relato sobre o LSD: "Era como se estivesse acolchoado por dentro." Preciso terminar de postar esse relato.
Alexei Bueno
Poesia
Essa se vai
Mas sempre volta,
Nunca nos trai,
Nunca nos solta.
Damos-lhe uns reles
Trapos com prantos
E ela faz deles
Místicos mantos.
Damos-lhe a lama
Da alma, e ela acende
Nisso uma chama
Que a noite entende.
Damos-lhe a finda
Vida, e ela a alça
A outra tão linda
Que a ida faz falsa.
Essa não mente,
Essa não passa,
Mira de frente
Glória ou desgraça.
E quando a Morte
Nos pisa, branda,
Ela diz, forte:
Levanta-te e anda!
BUENO, Alexei. Lucernário. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.266.
Paul Klee e João Cabral de Melo Neto
The Golgfish, 1925 (imagem obtida aqui)
HOMENAGEM A PAUL KLEE
Nele houve o insano projeto
de envelhecer sem rotina;
E ele o viu, despelando-se
de toda pele que tinha.
Sem medo, lavava as mãos
do que até então vinha sendo:
de noite, saltava os muros,
saía a novos serenos.
MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.40.
quinta-feira, 26 de maio de 2011
uma imagem rara: o fascínio do Universo
Gases moleculares em expansão. Imagem obtida aqui (ESA/AOES Medialab).
"Tradicionalmente, pensamos em galáxias luminosas como universos-ilha isolados e pontuais, como o filósofo alemão Immanuel Kant propôs. Em alguns casos, isso é certamente verdade. Ocorre que as brilhantes ilhas galácticas são apenas os pontos visíveis de um oceano muito maior, mas ainda elusivo, de matéria bariônica. Esse material permeia o Universo, distribuído e moldado por uma vasta arquitetura escura subjacente, evoluindo gradualmente pela ação da gravidade.
(...) O que chamamos de galáxias se formou desse material bruto, empurrado para regiões com densidade mais elevada pela gravidade. Mas essas estruturas não são grupos fixos de bárions. O material se move entre elas como parte de um grande ciclo que tem estado em operação desde o Big Bang. A influência competitiva entre a gravidade e o processo de feedback faz o gás se resfriar sobre as galáxias e depois ser ejetado dela. Simulações recentes sugerem que até metade dos bárions atualmente presos nas galáxias no Universo local foram reciclados ao menos uma vez e, frequentemente, muitas vezes através do meio intergaláctico. Os bárions que constroem o nosso corpo participaram desse ciclo por aproximadamente 14 bilhões de anos; a matéria em nossa unha poderia ter sido formada em estrelas de outra galáxia e, então, consumido bilhões de anos exilada no espaço intergaláctico antes de chegar ao Sistema Solar. Somos apenas uma fase efêmera, breves hospedeiros, para esta rara substância que dizemos ser 'normal'.
(...) Concebemos as galáxias como nossa casa cósmica, um brilhante, vasto e complexo lar mergulhado na escuridão. De um ponto de vista antrópico, apenas tivemos sorte suficiente de existir em um tempo quando os bárions que compõem a Terra e tudo que sobre ela existe tomaram uma forma estável e fria. Esse não será sempre o caso. A morte do Sol em cerca de 5 bilhões de anos calcinará os planetas interiores, evaporará os exteriores e gradualmente dispersará os detritos resultantes de elementos pesados no meio interestelar. A menos que os humanos deem um jeito de enganar o ciclo desenvolvendo a capacidade técnica para escapar do confinamento do Sistema Solar, as cinzas de todo o material sobre a Terra estarão fadadas a retornar e enriquecer o Cosmos. E assim o ciclo continua."
James E. Geach. Galáxias perdidas. Scientific American Brasil, ano 10, nº 109, p.61. jun. 2011.
quarta-feira, 25 de maio de 2011
coisas insuportáveis
Um personagem de José J. Veiga afirma: "Todo mundo vem dizendo há muito tempo que a vida está insuportável, e que se continuar assim... Pois continua, e cada dia piora, e estamos aí aguentando. Quando parece que não vamos aguentar mais e cair no desespero, alguém inventa um passatempo para nos distrair." Trata-se do romance Sombras de reis barbudos. No entanto, seja por retórica ou por excesso, falamos com frequência em coisas insuportáveis. Aí vai minha listinha:
- Assistir ao Jornal Nacional.
- Aturar por mais de 10 minutos os pequenos fascismos (podres poderes) de todo dia.
- Ouvir funk.
- Ouvir piadinhas de duplo sentido com conotação sexual como se fosse a coisa mais normal deste mundo.
- Os semi-deuses e heróis que resistem à overdose do próprio ego inflado.
- Pessoas cretinas.
- Hipócritas de qualquer espécie, incluindo os sabotadores.
- As figurinhas carimbadas de sempre, que é possível farejar à distância.
- Os pequenos tiranetes, cujo discurso denuncia o gozo que sentem com o poder.
- Trabalhar demais.
terça-feira, 24 de maio de 2011
tarde com a amiga
O contraponto de tudo foi a tarde passada na companhia da amiga, apenas isso, amiga, cuja generosidade preenche de tal modo o jeito redondo da palavra que eu saí do encontro saciada. Apesar de extremamente modesta e despojada de poses ou pretensões intelectuais, ou quem sabe por isso mesmo, esta amiga é das pessoas mais interessantes que conheço: alguma coisa nela faz pensar que ali se encontra um ser diferenciado, e isso, que é fácil de perceber no convívio, é praticamente impossível de traduzir em palavras.
Alexei Bueno
Do inacabado livro nosso, a vida,
Em vão nos perguntamos em que frase
Truncada, ou em que sílaba
Partida, a Moira cega o vai parar.
Enquanto alheio, entre os seus rolos muitos,
O vento passa, o mesmo
Que nada nos contou quando passava,
E vira as folhas brancas, incontáveis
Mortalhas, sobre nós.
BUENO, Alexei. Poemas gregos. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.185.
"A Morte": Vinicius de Moraes
Sonhei com a morte, um sonho sufocante de que consigo me lembrar pouco, pouco mais que uma sentença: o caráter arbitrário da morte sobre a vida, o fato dela vir de surpresa, sem aviso, e levar alguém. Não sei se era eu que morria na figura de alguém que morria no sonho, mas enquanto alguém morria acordei com as mãos cruzadas sobre o peito, a respiração difícil, não sei se pela matéria do sonho ou pela força das mãos, provavelmente para sair daquela posição e me acordar do sonho. Passados dois dias o telefone tocou. Alguém próximo da família, uma pessoa jovem, morreu hoje de forma estúpida. Então foi inevitável lembrar do sonho e de muitas outras coisas, e me veio à mente este poema:
A MORTE
A morte vem de longe
D fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
MORAES, Vinicius. Nova antologia poética. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p.41.
Bob Dylan, 70
Bob Dylan olha para o fotógrafo durante uma coletiva de imprensa em Los Angeles, em 1965
[imagem obtida aqui]
exercícios
O local para onde me mudei possui uma sala de ginástica. Ainda não fui conferir, mas foi o bastante para me lembrar que faz mais de dois anos que não me dedico a qualquer atividade física. Desde então, as circunstâncias, as mais variadas, têm me impedido de retomá-las. Gostaria de voltar a fazer natação, se houvesse algum espaço por perto. Mas toda vez que penso em me exercitar me ocorre que o melhor exercício que gosto de fazer é este: escrever. Melhora bastante a respiração.
domingo, 22 de maio de 2011
patinho feio ou belo cisne?
A vantagem de não ter lido certas histórias durante a infância é a possibilidade de se surpreender com aquilo que todos já sabem. Conhecia por alto a história do patinho feio, de Hans Christian Andersen, mas nada sabia de seu desfecho. Na minha cabeça, a história gravitava apenas em torno da inadequação do patinho, e imaginava uma possível aceitação pelo grupo. Surpreendi-me com a descoberta do patinho, de que era um belo cisne. A história parece querer mostrar o quanto o olhar do outro condiciona o próprio olhar. Num mundo em que a coerção do grupo recebeu um substancioso impulso das redes sociais, sentir-se inadequado pode ser um sinal de saúde, de vida que resiste: ninguém é obrigado a vestir-se de pato só porque todos acham que este é o melhor perfil.
Antonio Carlos Secchin: palavras
"Nossa liberdade passa não apenas pelas palavras em que nos reconhecemos, mas sobretudo pelas palavras com as quais aprendemos a nos transformar."
SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p.75.
hifens duplos
O que queria dizer do hífen em post anterior acabei não dizendo: há uma situação muito específica em que recomenda-se, para efeito de clareza, repetir o hífen na linha seguinte no caso de coincidir o hífen e a separação silábica no final da linha (conforme o novo acordo ortográfico). Matéria controversa, como se pode conferir AQUI, haja vista que o procedimento servia apenas para evitar equívocos na fase da tipografia, soando datado quando o computador reconfigurou a maneira de escrever, eliminando a necessidade da translineação. O emprego do hífen já me era difícil: com o novo acordo, eu desisti de tentar entender, recorrendo, para as dúvidas ortográficas (estas e quaisquer outras) ao Pequeno vocabulário ortográfico da língua portuguesa, que levo sempre comigo para a sala de aula, para dirimir qualquer dúvida que apareça, as minhas, principalmente. Mas não me escapou a função suplementar para os hífens duplos: manter apartado o que não pode estar junto. Quem me contou sabia o que estava dizendo, mesmo sem percebê-lo.
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