Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
os excessos do saber
O lado delicado da palavra pode ser o silêncio, mas isso é só quando a pessoa sabe.
quarta-feira, 1 de agosto de 2012
terça-feira, 31 de julho de 2012
intensidade
Um poema, um verso, uma palavra ― qualquer traço que, na ponta
extrema dos dedos, possa (aqui falha o
verbo...), possa dar conta da intensidade do dia que ora finda. Coisas que
não se dizem impunemente, mas que pedem para ser ditas, nem que seja através do
ruído. É preciso fazer respirar
profundamente o verbo, para que ele possa reverberar para além dos circuitos da
razão.
segunda-feira, 30 de julho de 2012
lendo clarice lispector antes de dormir
“Aceito esta minha cabeça à chuva tremeluzente da primavera,
aceito que eu existo, aceito que os outros existam porque é direito deles e
porque sem eles eu morreria, aceito a possibilidade do grande Outro existir
apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não me ter sido dado.”
Clarice Lispector. A
descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.141. Da crônica “Eu sei
o que é primavera”.
domingo, 29 de julho de 2012
clarice lispector, macacos, rio de janeiro
Vou ao dicionário
saber mais sobre os saguis (agora sem trema) antes de começar, para não correr
o risco de falar do primata errado. Descubro-os,
entre outras coisas, pertencentes à família dos calitriquídeos: pequenos primatas, florestais, da família
dos calitriquídeos, com cerca de 20 espécies, encontradas nas Américas Central
e do Sul; com até 37 cm de comprimento do corpo, cauda longa e não preênsil,
pelagem macia e densa, de colorido variável, unhas em forma de garra e polegar
não oponível; vivem em pequenos grupos e se alimentam principalmente de insetos
e frutas. Então, são mesmo saguis os pequenos
primatas que ouço e vejo (mais ouço que vejo) todo dia nas imediações de onde
moro. Pequenos, delicados, reúnem-se nas árvores do outro lado da rua. Já me
acostumei a ouvi-los, principalmente pela manhã. A memória imediata despertada
foi o sítio de minha irmã em Domingos Martins. É como se pudesse ter um torrão
de lá aqui, no andar alto de um prédio localizado em via bastante movimentada.
E foi talvez pela súbita familiaridade com os saguis, com sua companhia
benfazeja, que a notícia da morte por envenenamento de seis macacos no bairro Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, ancorou mais que outras
notícias, afinal sequer moro no bairro. Mas moro na mesma cidade, e se
já havia lido outras vezes a crônica “Macacos” de Clarice Lispector, agora a cidade
enveredou-se ao texto: “Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência
feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já
que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita
a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me
salvou: meninos do morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria,
e no desvitalizado Ano Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.” (Os melhores contos de Clarice Lispector.
3.ed. São Paulo: Global, 2001, p.99).
Orides Fontela
A CHUVA
lavou-me
toda
sem deixar
vestígios
de ontem.
FONTELA, Orides. Poesia reunida. São Paulo: Cosac Naify:
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p.234.
ATIRE SE PUDER - NELSON LEIRNER
A coleção
de Gilberto Chateubriand exposta no MAM-Rio é bastante diversificada, indo de
nomes representativos do modernismo ao
contemporâneo. Neste último, uma instalação, situada num local de passagem,
obriga parada: “Atire se Puder”, de Nelson Leirner (2001). A disposição dos
revólveres lembra, estranhamente, as prateleiras
de um supermercado, com os produtos apontados ameaçando o consumidor (dentro de um supermercado, todo mundo
torna-se um ―
pode ser um dos recados). Mas a agressividade da instalação ultrapassa a
metáfora, qualquer que seja ela, pois as armas (de plástico) estão apontadas
para quem vê a instalação de frente (a não ser que se evite fazê-lo, o que,
pela própria agressividade de tudo, é mais do que desejável). Ao perceber,
lateralmente, do que se trata, ou seja,
ao perceber as armas apontadas, há um movimento irrefletido de recuo, de tentar
passar sem se sentir mirado por aquilo, pelas armas (apontadas). O verbo no
imperativo (“atire”) vem seguido de dois
termos semanticamente dubitativos: a conjunção “se” e o verbo “poder” conjugado
no modo da possibilidade, o subjuntivo (“puder”). Não é “atire se quiser”, o
que daria a sensação de poder: é “atire se puder”, ou seja, se conseguir, se
alcançar fazê-lo, se estiver ao (seu) alcance... colocando, desse modo, o
espectador na posição de mirado, de alvo, já que o enunciado-título lança o
desafio de ter cacife para a concretização do dito, da transformação da potência
em ato ― mas quem quer fazê-lo? Atirar em quem? Por quê? Qual seria o alvo
daquelas armas, assaz bélicas, já que se pressupõe o rechaço da violência em
qualquer tentativa mínima de humanização? Violência que insiste em se
presentificar, em incomodar, em voltar sempre, em deixar sua marca indelével nas
vítimas, nas suas mais diferentes formas e manifestações. É como se a
instalação pudesse dizer: não se pode evitar a violência, resta saber de qual
lado se consegue estar, o que certamente traz o incômodo de perceber a
onipresença de alguma forma de poder em qualquer lugar discursivo e social que se ocupe. A arte, então, surge como uma suspensão
desses lugares-discursos, porque nela pode-se encontrar alguma remissão, uma
tentativa de saída, de esvaziar a belicosidade do poder. A potência (de que
tipo, aliás?) ― “ATIRE” ― apresenta-se circunscrita ao campo do poder, um poder
agressivo, armado, letal. Então as coisas podem, também, voltar para a
prateleira do supermercado e ganhar o desconforto de uma metáfora: o
capitalismo.
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