Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
terça-feira, 15 de outubro de 2019
domingo, 13 de outubro de 2019
Poema da Inútil Busca - João Carlos Teixeira Gomes
Onde estou, que já me esqueço,
mais evadido que achado,
por sob a máscara de gesso
com que oculto o meu fado?
Porque tenho que esconder-me
pondo nos cantos da boca
um tal sorriso que, ao ver-me,
deplore essa glória oca?
Eu, que me chamo João,
aonde irei, se não fui chamado,
perdendo os passos no chão
sem que chegue a qualquer lado?
Que mulher de porte egrégio
há-de servir-me de porto
jungida ao meu sortilégio
com um olho aceso e outro morto?
Onde estará meu destino
de rei sem manto ou coroa
rendido ao seu desatino
de pedir à dor que não doa?
E o cão que outrora tive
de magoado focinho
acaso é morto ou ainda vive
perdido do meu carinho?
Onde os amigos fiéis
que morreram, de tão poucos?
Ao meu olhar de revés
onde vê-los, sãos ou loucos?
Onde estou, que já me esqueço,
mais evadido que achado,
por sob a máscara de gesso
com que oculto o meu fado?
BRAGA, Rubem.
A poesia é necessária. Org. André
Seffrin. São Paulo: Global, 2015, p.146-147.
domingo, 22 de setembro de 2019
terça-feira, 17 de setembro de 2019
domingo, 7 de julho de 2019
Herberto Helder: a paixão grega
Li algures que os gregos antigos não escreviam
necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega
Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo. Assírio & Alvim, Lisboa: 2008. (daqui)
sábado, 6 de julho de 2019
de vez
Professor de português
perde a cabeça de vez.
Nada há a fazer
a não ser um poema
sobre frutos ainda
de vez.
Ana Cristina César: "Psicografia"
Também
eu saio à revelia
e
procuro uma síntese nas demoras
cato
obsessões com fria têmpera e digo
do
coração: não soube e
digo
da
palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na
vida) e demito o verso como quem acena
e
vivo como quem despede a raiva de ter visto
CÉSAR, Ana Cristina. Poética. São Paulo: Companhia das Letras,
2013, p.193.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
quinta-feira, 16 de maio de 2019
quarta-feira, 1 de maio de 2019
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