Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 8 de maio de 2010

metáfora: espinha dorsal da linguagem

A linguagem cotidiana organiza-se pela metáfora, pelo eixo das similaridades, muito mais do que faria supor a forma com que normalmente utilizamos essa figura de linguagem: 

“A metáfora é, para a maioria das pessoas, um recurso da imaginação poética e um ornamento retórico — é mais uma questão de linguagem extraordinária do que de linguagem ordinária. Mais do que isso, a metáfora é usualmente vista como uma característica restrita à linguagem, uma questão mais de palavras do que de pensamento ou ação. Por essa razão, a maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente bem sem a metáfora. Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na ação. Nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza.
Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras questões do intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas. Tal sistema conceptual desempenha, portanto, um papel central na definição de nossa realidade cotidiana.
Para dar uma ideia de como um conceito pode ser metafórico e estruturar uma atividade cotidiana, comecemos pelo conceito DISCUSSÃO e pela metáfora conceitual DISCUSSÃO É GUERRA. Essa metáfora está presente em nossa linguagem cotidiana numa grande variedade de expressões:
Seus argumentos são indefensáveis.
Ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação.
Destruí sua argumentação.
É importante perceber que não somente falamos sobre discussão em termos de guerra. Podemos realmente ganhar ou perder uma discussão. Vemos as pessoas com quem discutimos como um adversário. Atacamos suas posições e defendemos as nossas. Planejamos e usamos estratégias. Se achamos uma posição indefensável, podemos abandoná-la e colocar-nos numa linha de ataque. Muitas das coisas que fazemos numa discussão são parcialmente estruturadas pelo conceito de guerra.
Esse é um exemplo do que queremos dizer quando afirmamos que um conceito metafórico estrutura (pelo menos parcialmente) o que fazemos quando discutimos, assim como a maneira pela qual compreendemos o que fazemos.” 

LAKOFF, G. e JOHNSON, M. Texto adaptado de Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC, 2002, p. 45-47.


Metáfora: "like a", "como", subentendidos, muitas vezes difíceis de serem desentranhados... Como pedras rolantes, o eixo das similaridades configura o nosso próprio processo cognitivo. É o que afirma Heberth Paulo de Souza, num pequeno texto que dedicou à questão: 

“(...) a metáfora não é exclusiva de determinadas áreas, sendo um fenômeno natural da nossa comunicação diária, seja oral ou escrita (e até gestual), como reflexo da maneira de pensar do homem. À primeira vista, parece exagero dizer que a comunicação humana é metafórica por excelência, mas realmente é isso que acontece. Basta percebermos como que a todo momento operamos transferência de idéias de um domínio cognitivo para outro, inter-relacionando elementos de diferentes espaços mentais, o que constitui a essência da metáfora. Em expressões simples do nosso dia-a-dia, como “combater a inflação”, “vencer o medo”, “espantar a preguiça”, “esperar a morte”, “lutar contra a fome”, “ser derrotado pelo desafio” e outras, projetamos a idéia de anima (alma) para o espaço mental de elementos que nem corporeidade possuem (inflação, medo etc.). Assim, esses elementos passam a ser conceptualizados como pessoas, tanto que até incorporam características humanas, como serem benéficos, amigáveis, inimigos, fortes etc. Outro caso bastante comum: existem metáforas que são o reflexo da orientação espacial do homem em relação à força gravitacional a que estamos sujeitos desde o momento em que nascemos até a nossa morte. Quando se diz, por exemplo, que alguém está “para cima”, ou está “para baixo”, está “deprimido”, que o humor de alguém está “em alta”, que alguém se encontra “no fundo do poço”, alguém está com o espírito “elevado”, e mesmo quando se utilizam certos gestos como elevar as mãos para o céu em sinal de invocação divina, apontar o polegar para baixo para dizer que não se está bem, erguer o polegar para cima para dizer que está “tinindo”, são situações que retratam um modo de ver o mundo baseado nas metáforas fundamentais “para cima é bom” e “para baixo é ruim”.


“Todas as formas de discurso são superpovoadas de metáforas. Em alguns casos, é praticamente impossível – ou, pelo menos, inviável – não lançar mão desse recurso, tamanha a sua eficácia para a compreensão dos fenômenos. Quando um estudante de Biologia, por exemplo, aprende sobre o sistema imunológico humano, automaticamente lida com metáforas: os vírus são associados a inimigos, os anticorpos são associados a tropas de defesa territorial, o corpo é um grande território onde acontecem as batalhas, as vacinas são associadas a tropas de apoio no combate aos vírus, e assim por diante. Também na informática se lida com várias metáforas: programas destrutivos são chamados de “vírus”, documentos são cognominados “arquivos”, conjuntos de documentos são armazenados em “pastas”, elementos são organizados em “áreas de trabalho”, a capacidade de armazenamento de dados é chamada de “memória”, o visual que enfeita o monitor é o “papel de parede”, e assim por diante. Valendo-nos aqui também da metaforização, podemos dizer que as construções linguísticas tradicionalmente rotuladas como metáforas são apenas a ponta do iceberg de um fenômeno muito mais amplo no nível da linguagem e da cognição humana. Nessa perspectiva, entender melhor as metáforas equivale a compreender um pouco mais a respeito do intrincado e misterioso terreno que é o funcionamento da mente humana.”

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