Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

João Cabral de Melo Neto

Há gente que se gasta
de dentro para fora,
e há gente que prefere
gastar-se no que choca:

nesta pertence aquela
sempre vertiginosa
que parece habitar
num corpo sobre rodas;

gente que não consegue
parar nenhuma hora
e que assim se aproveita
de toda sua corda

para andar se atirando
contra as coisas em volta,
talvez com esperança
que uma seja pistola.

Talvez, é por prezar
o mundo em que se mova
(a espessura tranquila
de uma coisa que pousa,

a mansidão da coisa
que aceita virar outra)
que essa gente se atira
aos trancos entre as coisas.

Não: é porque ouviriam,
se parassem uma hora,
a voz da alma vazia
dobrando dentro, morta,

a voz que dobra em muitos
mas que neles redobra
porque dentro de crânios
vazíissimos, de abóboda.

MELO NETO, João Cabral de. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.300-301. 

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