"Estou
cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo
conta do mundo. Todos os dias olho pelo terraço para o pedaço de praia com mar
e vejo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as águas
avançaram inquietas. Vejo isto pela marca que as ondas deixam na areia. Olho as
amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o
céu da noite está estrelado e parece azul-marinho porque em certas noites em
vez de negro o céu parece azul-marinho intenso, cor que já pintei em vitral.
Gosto de intensidades. Tomo conta do menino que tem nove anos de idade e que
está vestido de trapos e magérrimo. Terá tuberculose, se é que já não a tem. No
Jardim Botânico, então, fico exaurida. Tenho que tomar conta com o olhar de
milhares de plantas e árvores e sobretudo da vitória-régia. Ela está lá. E eu a
olho.
Repare
que não menciono minhas impressões emotivas: lucidamente falo de algumas das
milhares de coisas e pessoas das quais tomo conta. Também não se trata de
emprego, pois dinheiro não ganho por isto. Fico apenas sabendo como é o mundo.
Se
tomar conta do mundo dá muito trabalho? Sim. Por exemplo: obriga-me a me
lembrar o rosto inexpressivo e por isso assustador da mulher que vi na rua. Com
os olhos tomo conta da miséria dos que vivem encosta acima.
Você
há de me perguntar por que tomo conta do mundo. É que nasci incumbida.”
Clarice
Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.60-61.
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