Balzac, que percebeu tanta coisa,
percebeu também qual era o papel que a
polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.
polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.
O romancista tinha mais ou menos
dezesseis anos quando Napoleão caiu, e
assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
A polícia de um soberano absoluto é
ostensiva e brutal, porque o soberano
absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado
constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando
organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” ― ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.
absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado
constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando
organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” ― ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.
Para este fim, criam-se por toda a parte
vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização
dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas
siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões e
alcagüetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente outra atividade.
Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente
da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac e dispensado só nos casos de salvação
da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais
a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto
possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
Para obter esse resultado, a sociedade
suscita milhares de indivíduos de alma
convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O homem que ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara ― e os remete à função repressora.
convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O homem que ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara ― e os remete à função repressora.
Daí o interesse da literatura pela
polícia, desde que Balzac viu a solidariedade
orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski percebeu uma coisa mais
sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência ― a
sociedade entrando na de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele
efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de
instrução Porfírio Porfíriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie
de desdobramento dele mesmo.
Mas foi Kafka, n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo
tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta
assumindo cada vez mais um aspecto da polícia. Viu de que maneira a função de reprimir
(mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente,
ao ponto de acabar se tornando sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela
desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Para entrar em funcionamento, a
polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de
estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, por que a sua
finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até
liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que
meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de
ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está
envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba
tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a
materialidade da culpa perde sentido.
A polícia aparece então como um agente
que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de
equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade,
discrição ― dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como
poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido
reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade
em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.
Daí uma espécie de monstruosa verdade
suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se
apresentando como outro, que de fato
era outro, na medida em que não era
obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto
dizer que o outro é o suscitado pela
polícia. O outro, com a sua verdade imposta
ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões
onde tinha sido mais ou menos trancada.
De fato, a polícia tem necessidade de
construir a verdade do outro para
poder
manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo ― em todos os seus graus e modalidades.
manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo ― em todos os seus graus e modalidades.
***
Um exemplo dessa redução degradante é o
comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.
O delegado, que é também o criminoso,
resolve brincar com o destino e como
que provar o mecanismo autodeterminante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
que provar o mecanismo autodeterminante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
Chegando à polícia, o transeunte, que é
encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia
delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com
brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino
que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado
pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando
suspeito, vai-se caracterizando legalmente como possível criminoso, até desaparecer
dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde
bem suspeitamos.
A força que o paralisa, e que nos
paralisaria eventualmente, vem de uma
ambigüidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
ambigüidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo nesse episódio é modelar: a
gratuidade com que se escolhe o culpado; a
imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinqüente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.
imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinqüente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.
O fulcro desse processo talvez seja
aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já
zonzo, qual é a sua profissão.
“― Sou hidráulico”, responde ele.
O delegado esbraveja:
“― Qual hidráulico qual nada! Agora toda
a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é?
En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”
E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo:
“― Sim, sou encanador.”
(Cito de memória porque não tenho o
roteiro.)
Vê-se que o pobre homem, a exemplo de
toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho
técnico (idraulico, em italiano), que
o afasta da velha designação artesanal encanador (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível
aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial
o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, tira para
fora a sua verdade indesejada. E no
fim, é como se ele dissesse:
“―Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca
inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um
encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu,
libertado do outro”.
Mas na verdade, foi a polícia que lhe
impôs o outro como eu. A polícia efetuou
um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou no seu diário:
um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou no seu diário:
“Não tenho medo da pobreza, nem do
exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenho medo do medo”.
(Publicado
em Opinião, nº 11, 15-22 de janeiro
de 1972.)
Revista
Discurso, São Paulo, nº 10, 1979,
p.1-5.
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