Um dos contos mais instigantes de Primeiras estórias surpreende pelo título ― "Nada e a nossa condição": a presença da conjunção aditiva e em vez do esperado é (o verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular do presente do indicativo). Mesmo assim, o título parece querer dizer que nossa condição é pouco mais do que nada. A obra de Guimarães Rosa, em seus aspectos mais metafísicos, trata de uma questão bem moderna ― o olhar, o conhecimento. Riobaldo, nos momentos culminantes de Grande sertão: veredas, faz-se acompanhar por um cego vidente. Em "São Marcos", o personagem principal, vítima de um vodu, passa por uma cegueira temporária, mas sua principal cegueira é existencial. No conto "O espelho", o olhar e sua construção/desconstrução são o tema, fortemente atrelado à identidade. Diz o narrador ao seu interlocutor, numa passagem que sintetiza bem a tônica conferida aos olhos, uma metonímia da olhar: "Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim." (p.66). Mais adiante, pergunta-se, após a disciplinada, árdua e obstinada desconstrução desse olhar sobre si:
"Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles! Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até a total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho ― com rigorosa infidelidade. E seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças ― o espírito do viver não passando de ímpetos espamódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória." (João Guimarães Rosa. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p.70-71).
Difícil comentar a riqueza sugestiva do trecho. A metonímia do olhar na imagem dos olhos que não enxergam nada, sequer os próprios olhos ― janelas da alma, no célebre dito atribuído a Leonardo da Vinci. O olhar que não se vê, e portanto não consegue se dizer. E aí Guimarães Rosa se encontra com Clarice Lispector, mais do que faria suspeitar o pertencimento à mesma época literária. Assunto que dá pano pra manga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário