Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 22 de junho de 2010

aonde vai a poupança popular?

Aonde vai a poupança popular?
Millôr Fernandes

O capitalistão americano entrou no Museu do Prado* e ficou besta diante de tanta arte. Que realidade, que vida, que grandiosidade! Os porretas desses pintores pintavam tão bem que as roupas até pareciam de vera fazenda. Depois de olhar e mais olhar, o capitalistão sentiu lá as suas limitações culturais**. Vendo que perto dele tinha um italiano fardado, à espera da gorjeta, o capitalistão botou a mão no bolso, puxou uma de cinco, deu pro homem*** e perguntou: “Quem foi que pintou isso?”. “Raffaello”, o italianão respondeu. “Bravo pittore.” “É vivo ainda?”, perguntou o capitalistão. “Não, já morreu”, respondeu o italianão. “Essa tela hoje deve estar valendo parecchi miliardi****, milhões de dólares”. “Milhões?”, boquiabriu-se o capitalistão. “E quem são esses personagens aí, pintados por um pintor tão caro?” “A virgem Maria, São José e o menino Jesus.” “Ah,” tornou o capitalistão, “e que é que estão fazendo ai?” “É a fuga pro Egito”, explicou o italianão. “Então é por isso que eles estão assim tão mal vestidos, é?” “Não. Eles sempre foram mesmo muito pobres”. “Ah,” exclamou de novo o capitalistão, “não eram nobres?” “Nobres, pô!”, respondeu o italianão. “Maria era uma mulher do povo, o marido era um carpinteiro.” “É o tal negócio,” concluiu então o capitalistão, “eu sempre digo que é por isso que a Espanha não vai pra frente: taí, vê? Uns proletários mortos de forme, gente que não tem nem o que comer, fugindo da polícia, e todo o dinheiro que têm, em vez de colocar na Bolsa, que é que eles fazem? Gastam tudo, mandando um pintor caríssimo fazer o retrato deles.”

MORAL: DESSA MANEIRA A ESPANHA JAMAIS PODERÁ ENFRENTAR O DESAFIO AMERICANO.

* Na verdade, quando ele entrou no Museu do Prado pensava que ia ver uma coleção de relíquias turísticas.
** É fatal. Qualquer coisa que a gente aprende só faz nos dar uma imensa impressão de estupidez.
*** Deu pro homem apenas economicamente, é bom esclarecer.
**** Esse italiano no Museu do Prado é uma tentativa minha de evitar qualquer forma de realismo.

Millôr Fernandes. Fábulas Fabulosas. 15. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p. 111-112.

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