De manhã
O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.
Um belo dia – por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos –
você abre a janela, ou abre um pote
de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:
É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega
a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?
E neste exato instante
você por fim entende, e refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.
(Mesmo que seja por trinta segundos.)
BRITTO, Paulo Henriques. Macau. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 72-73.
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