“Simulacros”, conto de Histórias
de cronópios e de famas (Julio
Cortázar. Trad. Gloria Rodríguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009, p.21-24), coloca para o leitor o
desafio de pensar o papel e o lugar da obra de arte. A estranha família
dedica-se a construir um patíbulo no jardim de sua casa, sem precisar o fim ou
as motivações de fazê-lo:
“Somos uma família estranha. Neste país onde as coisas se fazem
por obrigação ou fanfarronada, gostamos de ocupações livres, das tarefas sem
importância, dos simulacros que de nada adiantam. Temos um defeito: a falta de
originalidade. Quase tudo o que resolvemos fazer foi inspirado — digamos
francamente, copiado — de modelos célebres. Se contribuímos com alguma novidade
é sempre inevitável: os anacronismos ou as surpresas, os escândalos. Meu tio
mais velho diz que nós somos como as cópias de papel carbono, idênticas ao
original, a não ser que de outra cor, outro papel, outra finalidade. [...] Fazemos
coisas, mas contar é difícil porque falta o mais importante, a ansiedade e a
expectativa de estar fazendo coisas, as surpresas tão mais importantes que os
resultados, os fracassos em que toda família cai no chão feito um castelo de
cartas e durante dias e dias não se escuta mais do que lamentações e
gargalhadas. Contar o que fazemos é apenas uma forma de preencher os vazios
inevitáveis, porque às vezes estamos pobres ou presos ou doentes, às vezes
morre alguém ou (custa dizê-lo) alguém trai, renuncia, ou entra para a
Direção do Imposto de Renda. Mas disto não se deve deduzir que vamos mal ou que
somos melancólicos. Moramos no bairro de Pacífico e fazemos as coisas toda vez
que podemos. Somos muitos a ter ideias e vontade de levá-las à prática. Por
exemplo o patíbulo, até hoje ninguém chegou a acordo sobre a origem da ideia
[...].” (p.21)
O estranho patíbulo vai se fazendo, erguendo, ganhando forma,
assim como ganha forma e proporção o escândalo ao redor dele, da família que o
constrói, do jardim onde está sendo construído: “A essa altura dos
acontecimentos as pessoas da rua não podiam deixar de perceber o que estávamos
fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos estimulou agradavelmente a
encerrar a jornada com a montagem da roda. [...] A polícia chegou no momento em
que a família, reunida na plataforma, comentava favoravelmente o bom aspecto do
patíbulo.”
A terceira irmã — a mesma que se comparava ao rouxinol mecânico
de Andersen e cujo romantismo dava náuseas no narrador — era a única afastada
do grupo no momento da chegada da polícia, e a ela “coube dialogar pessoalmente
com o subcomissário; não foi difícil convencê-lo — prossegue o narrador — de
que estávamos trabalhando dentro de nossa propriedade, numa obra a que só o uso poderia
conferir um caráter inconstitucional, e que os comentários da vizinhança
eram produto do ódio e fruto da inveja.” (p.24) Deslocado de seu uso e contexto
habitual, nada impede que uma obra seja tomada artisticamente, exceto a
cegueira do utilitarismo. Que esta obra seja um patíbulo, ou um simulacro deste,
só faz pensar nos mecanismos de morte e vida que animam a produção em série e
em larga escala do universo capitalista, avesso ao caráter artesanal e
genuinamente coletivo de qualquer coisa, a não ser que essa coisa possa ser
institucionalmente chamada de “arte”, e seja colocada num lugar socialmente
previsto para alojá-la, a que as pessoas se dirijam para encontrar e apreciar o
que chamam de arte, porque assim se convencionou fazê-lo.
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