Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

os enganos do verbo enganar

Há vários dias venho querendo escrever sobre isso, os enganos do verbo enganar. Tudo porque um pensamento me ocorreu recentemente: não querer se enganar traz pressuposto um ego centralizador, que se toma como baliza e referência dos acontecimentos. Pensei isso de mim mesma, acerca de uma de minhas angústias circulares e recorrentes. É ridículo não querer se enganar, percebi então. O engano é inevitável, ainda que as cautelas e a aplicação da inteligência sejam intensas. A favor disso consta uma matéria superficial que li recentemente, que diz ser mito a ideia do uso de apenas dez por cento da capacidade do cérebro. Segundo a reportagem, nosso cérebro, ao contrário, vem sendo usado em sua potência máxima — daí as panes, os apagões, os surtos, os transtornos disso e daquilo. Fiquei tentada a conferir as várias acepções do verbo enganar no Houaiss. Emendei pelo atalho da forma pronominal, enganar-se, talvez na origem dos outros sentidos: ”ter impressão sensorial, percepção, julgamento, avaliação etc. que não corresponde à realidade; iludir(-se)”. Mas o que é a realidade, afinal, senão aquilo que nos dá os sentidos e a percepção? “Meus ouvidos enganaram-se” (ou enganaram-me?), “Minha percepção me enganou”, etc. Não obstante toda a luta para não enganar-se, persiste um fundo de incerteza que, pelo menos no âmbito das decisões pequenas e pessoais, faz da vida uma areia movediça. 

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