Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Liberdades – Luis Fernando Veríssimo

É livre quem pode fazer o que quiser — dentro das suas limitações de espaço, tempo, energia e recursos. Só se é livre dentro de certos limites. Portanto, toda liberdade é condicional.
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Só é totalmente livre quem pode exercer a sua vontade sem qualquer limitação moral ou material. Isto é: o tirano. Assim, a liberdade suprema só existe nas tiranias.
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Dizer que a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro é muito bonito. Mas e se a liberdade foi mal distribuída e o meu vizinho tem um latifúndio de liberdade enquanto a minha é um quintal de liberdade, liberdade mesmo que tadinha? Não é feio sugerir um reestudo da divisão.
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Cuidado com quem dá aos outros toda a liberdade. Geralmente é quem pode tirá-la.
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Há os que passam o dia inteiro livres e chegam em casa se queixando disso. São os motoristas de táxi. Toda liberdade é relativa.
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Toda liberdade é relativa. Verdade exemplarmente ilustrada por este diálogo entre o preso e o carcereiro.
— Nunca mais vou sair daqui.
— Calma. Não desanime.
— Não tem jeito. Estou aqui para sempre.
— Vou ver o que posso fazer por você.
— Não adianta. Estou condenado. Desta prisão eu não saio. Se esqueceram de mim.
— Eu não esquecerei. Voltarei para visitá-lo.
— Promete? — diz o carcereiro.
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Quem é livre às vezes não sabe. Quem não é livre sempre sabe. Ou será o contrário? A gente vê tanta gente inexplicavelmente feliz.
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Alguns são obcecados pela liberdade e prisioneiros da sua obsessão.
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Os loucos são livres e vivem presos por isso.
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Poderia se dizer que livre, livre mesmo, é quem decide de uma hora para outra que naquela noite quer jantar em Paris e pega um avião. Mas mesmo este depende de estar com o passaporte em dia e encontrar lugar na primeira classe. E nunca escapará da dura realidade de que só chegará em Paris para o almoço do dia seguinte. O planeta tem seus protocolos.
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Fala-se em liberdade como se ela fosse um absoluto. Mas dizer “eu quero ser livre” é o mesmo que dizer “eu quero” e não dizer o quê. Existe a Liberdade De e a Liberdade Para. Não é uma questão apenas de preposições e semântica. É a questão do mundo. O liberalismo clássico iconizou a Liberdade Para. Você é livre se tem liberdade para dizer o que pensa e fazer o que quer, para ir e vir e exercer o seu individualismo até o fim, ou até o limite da liberdade do outro. A ideia de que a verdadeira liberdade é a Liberdade De é recente. Livre de verdade é quem é livre da fome, da miséria, da injustiça, da liberdade predatória dos outros. A ideia é recente porque antes era inconcebível.
Ser livre do despotismo era automaticamente ser livre para o que se quisesse, para a vida e a procura individual do paraíso. Foi preciso uma virada no pensamento humano para concluir que Liberdade Para e Liberdade De não eram necessariamente a mesma liberdade e outra virada para concluir que eram antagônicas. A última virada é a decisão de que uma liberdade precisa morrer para que a outra viva. Não concorde com ela muito rapidamente.
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Enfim, de todos os crimes que se cometem em nome da liberdade, o pior é a retórica.
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Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, completamente livre, é a que não tem medo do ridículo.

VERISSIMO, Luis Fernando. Em algum lugar do paraíso. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p.181-185.

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