FAVELÁRIO NACIONAL
Carlos
Drummond de Andrade
À memória de Alceu Amoroso lima,
que me convidou a olhar para as favelas
do Rio de Janeiro.
1. PROSOPOPEIA
Quem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém e para
ninguém a noite inteira de sexta-feira
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te
conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a
mim, na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.
Decoro teus nomes. Eles
jorram na enxurrada entre detritos
da grande chuva de janeiro de 1966
em noites e dias e pesadelos
consecutivos.
Sinto, de lembrar, essas feridas
descascadas na perna esquerda
chamadas Portão Vermelho, Tucano, Morro
do Nheco,
Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreira do
Vasco,
Catacumba catacumbal tonitruante no
passado.
e vem logo Urubus e vem logo Esqueleto,
Tabajaras estronda tambores de guerra,
Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,
a suculenta Mangueira escorrendo caldo de
samba.
Sacramento... Acorda, Caracol. Atenção,
Pretos Forros!
O mundo pode acabar esta noite, não como
nas Escrituras se estatui.
Vai desabar, grampiola por grampiola,
trapizonga por trapizonga,
tamanco, violão, trempe, carteira
profissional, essas drogas todas
esses tesouros teus, altas alfaias.
Vai desabar, vai desabar
o teto de zinco marchetado de estrelas
naturais
e todos, ó ainda inocentes, ó marginais
estabelecidos, morrereis
pela ira de Deus, mal governada.
Padecemos este pânico, mas
o que se passa no morro é um passar
diferente,
dor própria, código fechado: Não se meta,
paisano dos baixos da Zona Sul.
Tua dignidade é teu isolamento por cima
da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de
cobra e baseado,
tuas perambeiras, templos de Mamallapuram
em suspensão carioca.
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal do monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.
Medo: não de tua lâmina nem de teu
revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma
irmandade.
Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
Mas, favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
Vês que perdi o tom e a empáfia do
começo?
2. MORTE GAIVOTA
O bloco de pedra ameaça
triturar o presépio de barracos e
biroscas.
Se deslizar, estamos conversados.
Toda gente lá em cima sabe disso
e espera o milagre,
ou, se não houver milagre, o
aniquilamento instantâneo,
enquanto a Geotérmica vai tecendo o
aranhol de defesas.
Quem vence a partida? A erosão caminha
nos pés dos favelados e nas águas.
Engenheiros calculam. Fotógrafos
esperam a catástrofe. Deus medita
qual o melhor desfecho, senão essa
eterna expectativa de desfecho.
3. URBANIZA-SE?
REMOVE-SE?
São 200, são 300
as favelas cariocas?
O tempo gasto em contá-las
é tempo de outras surgirem.
800 mil favelados
ou já passa de um milhão?
Enquanto se contam, ama-se
em barraco e a céu aberto,
novos seres se encomendam
ou nascem à revelia.
Os que mudam, os que somem,
Os que são mortos a tiro
são logo substituídos.
Onde haja terreno vago,
onde ainda não se ergueu
um caixotão de cimento
esguio (mas vai-se erguer)
surgem trapos e tarecos,
sobe fumaça de lenha
em jantar improvisado.
Urbaniza-se? Remove-se?
Extingue-se a pau e fogo?
Que fazer com tanta gente
brotando do chão, formigas
de formigueiro infinito?
Ensinar-lhes paciência,
conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los
para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada,
mirífica, róseo-futura
distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está
para ver como é que fica?
Em seminários, simpósios,
comissões, congressos, cúpulas
de alta vaniloquência
elaborar a perfeita
e divina solução?
Um som de samba interrompe
tão sérias cogitações,
e a cada favela extinta
ou em vila transformada
com direito a pagamento
de COMLURB, ISS, Renda,
outra aparece, larvar,
rastejante, desafiante,
de gente que nem a gente,
desejante, suspirante,
ofegante, lancinante.
O mandamento da vida
explode em riso e ferida.
4. FELIZ
De que morreu Lizélia no Tucano?
Da avalanche de lixo no barraco.
Em seu caixão de lixo e lama ela dormiu
o sono mais perfeito de sua vida.
5. O NOME
Me chamam Bonfim. A terra é boa,
não se paga aluguel, pois é do Estado,
que não toma tenência dessas coisas
por enquadramento. Na vala escorre
a merda dos barracos. Tem verme
n’água e n’alma. A gente se acostuma.
A gente não paga nada pra morar,
como ia reclamar?
Meu nome é Bonfim. Bonfim geral.
Que mais eu sonho?
6. MATANÇA DOS
INOCENTES
Meu nome é Rato Molhado.
Meus porcos foram todos sacrificados
para acabar com a peste dos porcos.
Fiquei sem saúde e sem eles.
Uma por uma ou todas de uma vez
pereceram minhas riquezas. Em Inhaúma
sobram meus ratos incapturáveis.
7. FAZ DEPRESSA
Aqui se chama Faz Depressa
porque depressa se desfaz
a casa feita num relâmpago
em chão incerto, deslizante.
Tudo se faz aqui depressa.
Até o amor. Até o fumo.
Até, mais depressa, a morte.
Ainda mesmo se não se apressa,
a morte é sempre uma promessa
de decisão geral expressa.
8. GUAIAMU
Viemos de Minas, sim senhor,
fugindo da seca braba lá do Norte.
Em riba de cinco estacas fincadas no
mangue
a gente acha que vive
com a meia graça de Deus Pai Nosso
Senhor.
Diz-se que isto aqui tem nome Nova
Holanda.
Eu não dou fé, nem sei onde é Holanda
velha.
Me dirijo à Incelência: Isso é mar?
Mar, essa porcaria que de tarde
a onda vem e limpa mais ou menos,
e volta a ser porcaria, porcamente?
Vossa senhoria tá pensando
que a gente passa bem de guaiamu
no almoço e na janta repetido?
Guaiamu sumiu faz tempo.
Aqui só vive gente, bicho nenhum
tem essa coragem.
Espia a barriga,
espia a barriga estufada dos meninos,
a barriga cheia de vazio,
de Deus sabe o quê.
Ele não podendo sustentar todo mundo
pelo menos faz inchar a barriga até este
tamanho.
9. OLHEIROS
Pipa empinada ao sol da tarde,
sinal que polícia vem subindo.
Sem pipa, sem vento,
sem tempo de empinar,
o assovio vara o morro,
torna o corpo invisível, imbatível.
10. SABEDORIA
Deixa cair o barraco, Ernestilde,
deixa rolar encosta abaixo, Ernestilde,
deixa a morte vir voando, Ernestilde,
deixa a sorte brigar com a morte,
Ernestilde.
Melhor que obrigar a gente, Ernestilde,
a viver sem competência, Ernestilde,
no áureo, remoto, mítico
― lúgubre
conjunto habitacional.
11. COMPETIÇÃO
Os garotos, os cães, os urubus
guerreiam em torno do esplendor do lixo.
Não, não fui eu que vi. Foi o Ministro do
Interior.
12. DESFAVELADO
Me tiraram do meu morro
me tiraram do meu cômodo
me tiraram do meu ar
me botaram neste quarto
multiplicado por mil
quartos de casas iguais.
Me fizeram tudo isso
para meu bem. E meu bem
ficou lá no chão queimado
onde eu tinha o sentimento
de viver como queria
no lugar onde queria
não onde querem que eu viva
aporrinhado devendo
prestação mais prestação
da casa que não comprei
mas compraram para mim.
Me firmo, triste e chateado,
Desfavelado.
13. BANQUETE
Dia sim dia não, o caminhão
despeja 800 quilos de galinha podre,
restos do frigorífico,
no pátio do Matruco,
bem na cara do Morro da Caixa-d’Água
e do Morro do Tuiuti.
O azul das aves é mais sombrio
que o azul do céu, mas sempre azul
conversível em comida.
Baixam favelados deslumbrados, cevam-se
no monturo.
Que morador resiste
à sensualidade de comer galinha azul?
14. AQUI, ALI, POR
TODA PARTE
As favelas do Rio transbordam sobre
Niterói
e o Espírito Santo fornece novas pencas
de favelados.
O Morro do Estado ostenta sem vexame sua
porção de miséria.
Fonseca, Nova Brasília (sem ironia)
estão dizendo: “Um terço da população
urbana
selou em nós a fraternidade de não
possuir bens terrestres”.
Os verdes suspensos da Serra em Belo
Horizonte
envolvem de paisagem os barracos da
Cabeça de Porco.
Se não há torneiras, canos de esgoto, luz
elétrica,
e o lixo é atirado no ar e a enchente
carrega tudo, até os vivos,
resta o orgulho de ter aos pés os
orgulhosos edifícios do Centro.
Belo Horizonte, dor minha muito
particular.
Entre favelas e alojamentos eternamente
provisórios de favelados expulsos
(pois carece de mandá-los para “qualquer
parte”, pseudônimo do Diabo),
São Paulo cresce imperturbavelmente em
esplendor e pobreza,
com 20 mil favelados no ABC.
Em Salvador, os alagados jungidos à
ultima condição humana
colhem, risonhos, a chuva de farinha,
macarrão e feijão
que jorra da visita do Presidente.
No Recife...
Quando se aterra o mangue
fogem os miseráveis para as colinas
entre dois rios. E tudo continua
com outro nome.
15. INDAGAÇÃO
Antes que me urbanizem a régua, compasso,
computador, cogito, pergunto, reclamo:
Por que não urbanizam antes
a cidade?
Era tão bom que houvesse uma cidade
na cidade lá embaixo.
16. DENTRO DE NÓS
Guarda estes nomes: bidonville, taudis, slum,
witch-town,
sanky-town,
callampas, cogumelos,
corraldas,
hongos, barrio
paracaidista, jacale,
cantegril, bairro de lata, gourbville,
champa, court,
villa miseria,
favela.
Tudo a mesma coisa, sob o mesmo sol,
por este largo estreito mundo?
Isto consola?
É inevitável, é prescrito,
lei que não se pode revogar,
nem desconhecer?
Não, isto é medonho,
faz adiar nossa esperança
da coisa ainda sem nome
que nem partidos, ideologias, utopias
sabem realizar.
Dentro de nós é que a favela cresce
e, seja discurso, decreto, poema
que contra ela se levante,
não para de crescer.
17. PALAFITAS
Este nasce no mangue, este vive no
mangue.
No mangue não morrerá.
O maravilhoso Projeto X vai aterrar o
mangue.
Vai remover famílias que têm raízes no
mangue
e fazer do mangue área produtiva.
O homem entristece.
Aquilo é sua pátria,
aquele, seu destino,
seu lodo certo e garantido.
18. CIDADE GRANDE
Que beleza, Montes Claros.
Como cresceu Montes Claros.
Quanta indústria em Montes Claros.
Montes Claros cresceu tanto,
ficou urbe tão notória,
prima rica do Rio de Janeiro,
que já tem cinco favelas
por enquanto, e mais promete.
19. CONFRONTO
A suntuosa Brasília, a esquálida
Ceilândia
contemplam-se. Qual delas falará
primeiro? Que tem a dizer ou a esconder
uma em face da outra? Que mágoas, que
ressentimentos
prestes a saltar da goela coletiva
e não se exprimem? Por que Ceilândia fere
o majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres
de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro.
20. GRAVURA BAIANA
Do alto do Morro de Santa Luzia,
Nossa Senhora de Alagados, em sua
igrejinha nova,
abençoa o viver pantanoso dos fiéis.
Por aqui andou o Papa, abençoou também.
A miséria, irmãos, foi dignificada.
Planejar na Terra a solução
fica obsoleto. Sursum corda!
Haverá um céu privativo dos miseráveis.
21. A MAIOR
A maior! A maior!
Qual, enfim, a maior
favela brasileira?
A Rocinha carioca?
Alagados, baiana?
Um analista indaga:
Em área construída
(se construção se chama
o sopro sobre a terra
movediça, volúvel,
ou sobre a água viscosa)?
A maior, em viventes,
bichos, homens, mulheres?
Ou a maior em oferta
de mão de obra fácil?
Maior em aparelhos
de rádio e de tevê?
Maior em esperança
ou maior em descrença?
A maior em paciência,
a maior em canção,
rainha das favelas,
imperatriz-penúria?
Tantos itens... O júri
declara-se perplexo
e resolve esquivar-se
a qualquer veredicto,
pois que somente Deus
(ou melhor, o Diabo)
é capaz de saber
das mores, a maior.
ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 23 livros de poesia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, p.870-880. [Corpo, 1984]
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