Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 29 de setembro de 2010

núcleo do sujeito

Essas crianças ainda vão me economizar um bom dinheiro de análise. Hoje, no 6º ano, num texto envolvendo sintaxe e pontuação, saiu alguma coisa sobre a questão do núcleo do sujeito. Um garotinho disse que seria aquilo que sobraria como sujeito depois de tirar todo o acessório, ao que eu respondi "mais ou menos, depende". Aí me lembrei de uma crônica lida faz muito tempo, num manual escolar, de cujo autor não me recordo, mas perfeita para ilustrar a questão. Tratava-se de um sujeito, um comerciante, que queria anunciar a venda de ovos, e encomendou a um letrista (no sentido de "aquele que desenha e/ou pinta letras em fachadas de lojas ou tabuletas") uma tabuleta com os seguintes dizeres (vou citar de memória, talvez não seja esta a frase): "NESTE ESTABELECIMENTO VENDEM-SE OVOS FRESCOS". Então o letrista começa a argumentar: mas por que dizer "neste estabelecimento"? Pois torna-se lógico que só poderia ser ali que os tais ovos frescos eram vendidos. Ficou então "VENDEM-SE OVOS FRESCOS". Novamente o letrista entra em ação: é mais ou menos evidente por si que se aquele era um estabelecimento comercial, os ovos eram vendidos, e não dados, emprestados ou alugados, por exemplo, de forma que o "vendem-se" também poderia sair. Saiu. Ficou, assim, "OVOS FRESCOS". O letrista de novo: mas, logicamente, os ovos vendidos devem ser necessariamente frescos, então não há por que chamar a atenção sobre isso (era um profissional honesto). De forma que restou "OVOS". Mas então veio a pergunta mais importante: mas por que vender OVOS, no fim das contas? A crônica terminava assim, com aquele humor peculiar dos textos que ilustravam os livros didáticos na época em que estudava inocentemente... Com esse estratagema, ilustrei a questão do núcleo do sujeito, afinal "vendem-se ovos", frescos ou não, é intercambiável com "ovos são vendidos", de forma que ovos não só é o núcleo do sujeito da oração inicial como se torna o sujeito da oração final, e afinal tornam-se uma dúvida para o comerciante ― e há algo que só me ocorre agora, enquanto escrevo: o ovo também tem uma espécie de núcleo, a gema no centro da clara, de forma que a crônica talvez tivesse outras camadas, de que então sequer desconfiei. Ou não. Ou seja, da sintaxe para a substância, digo, substantivo. Isso tudo falado assim meio rápido, em linguagem adequada ao público. Aí uma garota me perguntou se eu já havia comido ovos saídos direto da galinha, como se existissem ovos de galinha saídos de algum outro lugar, mas eu entendi, ela queria dizer ovos frescos. Estava mirando já outro tipo de núcleo, outro sujeito. Respondi que sim, afinal eu era/sou do interior, então comia sempre ovos frescos (me furtei de falar que via galinhas e outros bichos sendo mortos para a alimentação caseira). Só que eles perguntaram algo inusitado: se eu já tinha visto algum bicho nascendo. E então me lembrei, na mesma hora, que tinha visto uma bezerra nascendo! (Um aluno ainda falou que eu havia escrito "bezerra" errado no quadro; concordei com ele.) Lembrei de tudo: da repugnância que senti ao ver uma coisa meio indefinida envolvida numa gosma meio esbranquiçada, com sangue no meio (era a placenta, coisa que só vim a saber mais tarde). Mas eu vi, era de manhã, levaram a gente pra ver no curral, era perto de casa. Creio que devo ter ficado vários dias sem comer várias coisas que eventualmente me lembrassem aquela visão espantosa, de vida nascendo. E é curioso que me repugnou mais isso que a morte violenta dos animais a que então assistia, embora ressoem até hoje em meus tímpanos os gritos lancinantes dos porcos que ouvi morrer (não sei se alguma vez tive coragem de ir ver). Lembro-me, entretanto, das galinhas sendo mortas, quando não podiam mais fornecer ovos frescos. O que eu sentia diante daquilo tudo? Não sei, aliás não sei se sentia algo diferente de medo. Voltando às crianças, as de hoje, então alguém brincou dizendo que eu não estaria pensando na morte da bezerra (um dito popular), mas na vida da bezerra. Pode ser. Às vezes desconfio que eles me fazem essas perguntas para gastar o tempo, e a aula passar mais rápido. Mas pode ser curiosidade mesmo. Talvez, de alguma forma, eu quisesse entender melhor a vida que se apresentou a mim, na infância, com uma face tão brutal e violenta.

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