Sérgio Buarque de Holanda acaba de regressar da Alemanha, onde passou dois anos preparando uma invasão à Rússia, que fracassou
É a segunda tentativa desse gênero que ele leva a efeito. A primeira, todos devem estar lembrados, foi dentro do país. Sérgio planejava tomar Vitória de assalto. Os fins da campanha eram nobilíssimos e prendiam-se a motivos filosóficos, posso dizê-lo sem medo de errar, embora desconheça ainda hoje, como desconhecia então, os princípios que constituíam naquela época a “mensagem” (é a palavra elegante agora) de Sérgio. Como quer que fosse, meu amigo não chegou nunca a atingir a capital do Espírito Santo. Conseguiu penetrar até Cachoeiro do Itapemirim (a invasão se fez pelo sul) e lá se defendeu com bravura pelo tempo de quase dois anos. É interessante notar que a capacidade de resistência de Sérgio vai sempre até dois anos, valor que podemos firmar como a “constante de resistência” de Sérgio. Afinal a sua situação em Cachoeiro do Itapemirim se tornou insustentável, sobretudo depois de um baile na sociedade recreativa local e de um ou dois passeios líricos no jardim da praça da matriz, Sérgio Buarque de Holanda bateu em retirada, abandonando uma mala, que lá ficou indevidamente retida durante mais de um ano, o que motivou uma intervenção diplomática da província do Curvelo (Distrito Federal), porquanto dentro daquela mala se continham dois volumes preciosos, o Up Stream de Ludwig Levinsohn e a Antologia Modernista de Língua Inglesa de Harriet Monroe com dedicatória de Constance Lindsay Skinner para um dos mais magros representantes sobreviventes da velha aristocracia rural pernambucana. Enfim tudo acabou bem, exceto para o Liceu de Vitória, que perdeu a única oportunidade talvez de arranjar para professor de filosofia um homem que se distingue notavelmente entre nós por sua cultura.
A invasão da Rússia também redundou em fracasso, embora organizada com um senso mais agudo das realidades haurido na experiência anterior. Desta vez o objetivo de Holanda era morrer de fome em Moscou. Não o conseguiu, porém. Os exércitos vermelhos o atacaram e o aprisionaram 25 quilômetros além da fronteira polaca. Expulso do território russo, Holanda coisou a nova Alemanha, entrevistou o comandante do Zeppelin e o romancista Mann, que descobriu ser neto de brasileira, assassinou o Dr. Pontes de Miranda, foi redator da revista Duco e tradutor da Ufa, conversou várias vezes com Brigitte Helm (pronunciem Briguite), Marlene Dietrich (protagonista de Anjo Azul, que Sérgio diz ser o maior filme do mundo) e outros colossos de Rhodes.
Entrevista com Sérgio num bonde da Gávea à 1h30m da madrugada:
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― O poeta de mais influência sobre a geração nova é Hölderlin, toda a poesia atual deriva dele, é na Alemanha o que é Rimbaud na França, mais profundo que Rimbaud.
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― Dos velhos? Goethe.
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― Heine não, se lê muito menos. Schiller também caiu também caiu muito. Schiller é o representante da poesia do idealismo kantiano. O idealismo perde terreno cada vez mais na Alemanha. A mocidade está voltada para Klages, um nome quase inteiramente desconhecido fora da Alemanha e que dentro dela no entanto goza de enorme prestígio.
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― A filosofia de Klages é a da libertação dos instintos.
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― Quando saí daqui eu tinha uma tendência para o comunismo. Hoje estou achando nele o mesmo excesso de racionalismo do catolicismo. Comunismo e catolicismo são soluções extremamente racionalistas.
Por aí assim foi o Sérgio e passou depois a falar da prática da liberação de um certo instinto na Alemanha. Brasileiros que viveis uma vida apertada, conversai com o Sérgio! Ele vos contará coisas de deixar água na boca e traz detalhes surpreendentes, como o da venda em caixas automáticas, que se encontram por toda parte (nos cafés, nos bares, nas ruas, ao lado das caixas de correio) de um certo artigo de caout-chouc, que aqui só se compra em farmácia e meio que encalistradamente. Desse mesmo artigo há uma casa especial na Wilhelm Strasse, em cuja vitrine se ostenta um modelo da mercadoria em tamanho aumentadíssimo, aí coisa de um metro.
Todas essas picantes notícias da Alemanha não me consolam do desapontamento que meu causou o fracasso da invasão da Rússia pelo meu amigo Sérgio Buarque de Holanda. Tudo que se lê sobre a República dos Sovietes inspira desconfiança aos espíritos imparciais. As notícias são as mais contraditórias, segundo as ideias políticas dos viajantes que as visitam. E ainda se a gente pudesse acreditar na boa fé que as ditam, Sérgio, com a sua inteligência, a sua cultura, o seu tino jornalístico, a sua probidade, estava nas condições de nos fornecer um depoimento de primeira ordem e inteiramente digno de confiança. Estou certo que ele escreveria um livro notável, que interessaria ao mundo inteiro. A mesma ausência de qualquer fé bem definida de sua parte, de adesão a qualquer sistema, era uma garantia da isenção com que ele nos informaria. A leve tendência que ele manifestava para a doutrina comunista, tendência que se dissipou ao contato da Alemanha nova, influenciada pela filosofia de Klages, era apenas o necessário e bastante para que ele tudo olhasse com a simpatia desapaixonada de que não são capazes nem os comunistas militantes nem os seus adversários. E agora acabou-se! Sérgio é da... libertação dos instintos...
O Jornal, RJ, 24.01.1931.
BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 291-293.
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