Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

"professora, os seus olhos brilham"

As aulas de iloveyou da adolescência me fizeram escorregar para as aulas de português e literatura que ministrei, ano passado, para os pré-adolescentes do 6º ano. Das muitas coisas, boas e ruins, que escutei deles, havia um aluno, um tanto aéreo (parecia constantemente estar gravitando em outra órbita), que virava para mim e exclamava, às vezes do nada, Professora, os seus olhos brilham!, com uma voz de menino assustado que só fui entender bem depois, quando o surpreendi às sete da manhã chorando compulsivamente debruçado sobre a carteira. Violência doméstica, um filme conhecido e via de regra censurado pelas próprias vítimas, em geral pelo medo. Então eu intui o porquê da outra órbita e o olhar dirigido para o nada daquele garoto que se esquivava do meu olhar. E que sua iniciação na vida estava sendo brutal. Dizer que não sofri violência doméstica? Não vou dizer, não quero estragar o post. Preservei o brilho nos olhos, ao que parece, pois são outros olhos os que o veem. Adquiri, é certo, um horror absurdo à violência, e embora saiba ser quase impossível esquivar-me dela, tento ao menos me esquivar do quinhão que dela reconheço em mim. Perdi de vez a inocência quando li Genealogia da moral (sou teimosa, a vida já tinha me dado elementos suficientes para perdê-la, a inocência), leitura que me lançou numa prostração tal de que só consegui me erguer nas sessões de análise (sim, Freud também escreveu sobre o mal-estar na civilização, mas Nietzsche é bem mais impiedoso, nele as tintas da crueldade formam um painel grotesco). Meu Deus, começo falando de inocência e termino às voltas com a violência! Será que nunca mais vai ser possível, a inocência?

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