A coleção
de Gilberto Chateubriand exposta no MAM-Rio é bastante diversificada, indo de
nomes representativos do modernismo ao
contemporâneo. Neste último, uma instalação, situada num local de passagem,
obriga parada: “Atire se Puder”, de Nelson Leirner (2001). A disposição dos
revólveres lembra, estranhamente, as prateleiras
de um supermercado, com os produtos apontados ameaçando o consumidor (dentro de um supermercado, todo mundo
torna-se um ―
pode ser um dos recados). Mas a agressividade da instalação ultrapassa a
metáfora, qualquer que seja ela, pois as armas (de plástico) estão apontadas
para quem vê a instalação de frente (a não ser que se evite fazê-lo, o que,
pela própria agressividade de tudo, é mais do que desejável). Ao perceber,
lateralmente, do que se trata, ou seja,
ao perceber as armas apontadas, há um movimento irrefletido de recuo, de tentar
passar sem se sentir mirado por aquilo, pelas armas (apontadas). O verbo no
imperativo (“atire”) vem seguido de dois
termos semanticamente dubitativos: a conjunção “se” e o verbo “poder” conjugado
no modo da possibilidade, o subjuntivo (“puder”). Não é “atire se quiser”, o
que daria a sensação de poder: é “atire se puder”, ou seja, se conseguir, se
alcançar fazê-lo, se estiver ao (seu) alcance... colocando, desse modo, o
espectador na posição de mirado, de alvo, já que o enunciado-título lança o
desafio de ter cacife para a concretização do dito, da transformação da potência
em ato ― mas quem quer fazê-lo? Atirar em quem? Por quê? Qual seria o alvo
daquelas armas, assaz bélicas, já que se pressupõe o rechaço da violência em
qualquer tentativa mínima de humanização? Violência que insiste em se
presentificar, em incomodar, em voltar sempre, em deixar sua marca indelével nas
vítimas, nas suas mais diferentes formas e manifestações. É como se a
instalação pudesse dizer: não se pode evitar a violência, resta saber de qual
lado se consegue estar, o que certamente traz o incômodo de perceber a
onipresença de alguma forma de poder em qualquer lugar discursivo e social que se ocupe. A arte, então, surge como uma suspensão
desses lugares-discursos, porque nela pode-se encontrar alguma remissão, uma
tentativa de saída, de esvaziar a belicosidade do poder. A potência (de que
tipo, aliás?) ― “ATIRE” ― apresenta-se circunscrita ao campo do poder, um poder
agressivo, armado, letal. Então as coisas podem, também, voltar para a
prateleira do supermercado e ganhar o desconforto de uma metáfora: o
capitalismo.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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