Ontem vivi
algo insólito. Ao abrir a carteira para pagar um kit de escovas de dente numa
farmácia, tomei um susto ao não encontrar o dinheiro que deveria estar ali ―
seria o secreto receito de ficar de repente sem ele? A caixa da farmácia ouviu
minha exclamação, viu meu desconcerto, e deve ter engendrado lá suas hipóteses.
Tentei
ainda procurar, mas o dinheiro não estava em nenhum lugar diferente do usual,
de forma que alguma coisa tinha acontecido. Enquanto vasculhava mentalmente as
possibilidades e pagava no débito, comecei a rememorar meus passos para tentar
flagrar o momento em que o dinheiro tinha sumido. Tinha sido um dia corrido,
naquela tentativa de fazer várias coisas numa viagem só, de ida e volta ao
centro e à zona sul.
Fui
rememorando e, de imediato, descartei a possibilidade de ter sido assaltada,
afinal o primeiro lugar em que procurei o dinheiro foi a carteira, que estava
dentro da bolsa, e bolsa e carteira continuavam ali. Então poderia ter
simplesmente perdido, ao, na pressa, colocar o dinheiro em lugar diferente do
usual. Mas em que situação eu tinha manuseado o dinheiro pela última vez antes da
farmácia? Quanto dinheiro afinal estava faltando? Havia ainda quatro reais na
carteira, além do cartão do metrô e do bilhete único, que garantiam transporte
de volta até o centro, pelo menos.
Ainda
na zona sul, veio o estalo, a única possibilidade que fazia mais sentido em
relação aos meus movimentos: a atendente do caixa do lugar em que tinha
almoçado havia se esquecido de me dar o troco, ou eu me esquecido de pegar. Eu
não cheguei a colocar o dinheiro na carteira. Tentei me lembrar do momento do
almoço, montando o prato (customizando
a salada, como disse um dos funcionários) e depois estendendo a nota de
cinquenta reais para a atendente do caixa, antes do meu prato ficar pronto.
Nesse momento, pedi também uma água mineral. De fato, não me era totalmente
certa a lembrança de ter recebido o troco, embora também fosse possível tê-lo
recebido e, na distração do momento, tê-lo perdido no momento de me encaminhar
para mesa. Nunca vou conseguir ter certeza, mas foi ali que perdi a grande
fortuna de trinta reais.
Então,
antes de aceitar que eu, tão cuidadosa, tenha me distraído e perdido de bobeira
o dinheiro, ocorreu-me a ideia delirante de voltar ao estabelecimento e dizer
que meu troco não tinha sido devolvido. A ideia relampejou no meu cérebro, e
foi logo descartada, pela evidente inviabilidade e falta de sentido. Em adição,
por que se preocupar tanto com uma (pequena) importância perdida? Explicitamente perdida? Primeiramente
porque há muitas outras formas de perder dinheiro, sob a forma aparente de troca,
via consumo: dinheiro vai, mercadoria vem. Segundo que é preciso aceitar que
também se perde, inclusive dinheiro. Mas ainda não tinha acabado.
Já
no centro da cidade veio o estalo decisivo, e que é a justificava desse texto, da
narração de um fato em si sem importância. Ainda pensando na minha distração,
percebi que não tinha sido tão ruim assim a atendente não me ter dado o troco.
Quantas vezes dei e recebi o troco? Afinal essa tem sido a praxe, dar o troco,
não deixar de revidar, de devolver na mesma moeda. Então se alguém deixa de me
dar do troco, talvez esteja me fazendo um bem, assim como eu, a mim e ao outro,
quando desisto de revidar, de mostrar que sou inteligente e percebi muito bem a
ofensa, faça-me o favor etc. etc. Não só quero ter o desprendimento de poder
deixar de dar o troco como, se puder e conseguir, dar a outra face, para não
cair nas armadilhas dos acontecimentos vazios.
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