Da sequência de imagens que consegui organizar e recordar
ao acordar — naquele momento em que se tem ciência de que se trata de um sonho —,
aconteceu-me estar sentada num metrô, ou coisa equivalente, acompanhada de
alguém que não consigo identificar, mas que teria que ceder seu lugar quando
uma outra pessoa chegasse, uma espécie de cavaleiro distinto que tinha aquele
lugar destinado para si. Já não era mais metrô então, mas um evento social. O
cavaleiro chega, o lugar é cedido, e outro personagem sai. Movida quem sabe
pela culpa, quem sabe pelo desejo de entender o porquê do que se passava,
encaminhei-me ao quarto onde o outro personagem, que cedeu o lugar, se
encontrava, e era uma criança, um menino, que sentia frio, mas que parecia
disposto a suportar isso, resignado. Aqui seria preciso dizer que o menino era
negro. Mas por que dizê-lo? Por que isso faria algum tipo de diferença? Já então a cena é outra, e recorro
à minha mãe, que está passando roupa, para conseguir uma forma de agasalhá-lo,
protegê-lo, para que ele não sentisse frio. Minha mãe a princípio nega, então
insisto e consigo. O sonho termina aí. Não sei mais se ainda dormindo ou já acordada,
me dei conta de que aquela criança eu havia expulsado de mim, em troca do mundo
adulto e civilizado das convenções. Pode ser que tenha concorrido no sonho a
própria forma com que os negros eram tratados nos EUA, cedendo seu lugar no ônibus para os brancos. Não
precisaria ir tão longe, pois no Brasil os lugares também são bem marcados, o
que remete ao cavalheiro distinto que se sentaria ao meu lado. Seria bem mais
fácil para mim, talvez, entender o sonho se o menino não fosse negro. Mas ele
não tem só essa diferença em relação a mim: há também a questão do gênero e o
fato de ser uma criança. Ele, efetivamente, é a representação do outro, da
alteridade, da diferença, que por vezes expulso de mim para sobreviver. Ele é
uma diferença que de repente gritou dentro de mim, ou melhor, no seu silêncio
resignado, fez-se ouvir, porque eu tentei escutar. Ter sonhado com isso, ter,
no sonho, ido atrás, reconhecido, procurado proteger, conseguido discernir e
escutar essa diferença frágil e silenciosa é mais do que um consolo: é a
indicação de que um percurso está se fazendo.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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