Nas últimas duas semanas, o assunto principal das/nas
salas de aula tem sido as manifestações Brasil a fora. Naturalmente os
estudantes — pelo menos os da rede pública — entraram de corpo e alma no
movimento. E eles, também naturalmente, vêm perguntar aos professores o que
estes estão achando disso. Na “sala de professores”, o assunto também não tem
sido outro. Ocorre que, desde meados da semana passada, quando a revogação do
aumento das passagens não se mostrou bastante diante de uma pauta imensa de
reivindicações, tornou-se evidente que as manifestações tinham tomado outro
rumo e ganhando nova força, difícil de precisar, mas claramente direcionados —
rumo e força — contra a vaga entidade denominada governo. Não é preciso ter lido Foucault para saber o que se movia,
e continua se movendo, por detrás disso, pelo menos em se tratando de Brasil.
Então, na sexta-feira, diante de alunos empolgados com as novas manifestações
contra “tudo”, sugeri, diante de uma queixa contra o novo acordo ortográfico,
que isso se tornasse também uma pauta de reivindicações, e sugeri um brado de
ordem: “Idéia com acento!”, “Idéia com acento!”. Naturalmente todos riram, e
talvez alguém tenha somado o riso à ironia. O fato é que, naquela mesma noite,
uma nova onda de saques se verificou, transmitida ao vivo pela TV, seguida por
um domingo solar de esperança e muita violência. O corolário óbvio disso tudo é
que não somos europeus, nem mesmo em manifestações. E quem continua chamando
para as ruas deve saber que não dá para separar manifestação de arrastão: tudo,
em última instância, é manifestação, embora por demandas diferentes. É preciso
democratizar o conceito de povo, para poder pensar efetivamente em democracia.
O POPULAR
Luis Fernando Verissimo
Um número
recente da ‘Veja’ trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês)
“incomodações” na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me
impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.
É uma figura
que sempre me intrigou. A foto da ‘Veja’ mostra um soldado inglês espichado na
calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de
gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no
vão de uma porta, dois ou três dos seus companheiros, também em plena
parafernália de guerra, esperam tensamente para entrar no tiroteio. Há
fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que
atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o
que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular
foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.
Sempre pensei
que o Popular fosse uma figura exclusivamente brasileira. Nas nossas
incomodações políticas, no tempo em que ainda havia política no Brasil, o
Popular não perdia uma. Os jornais mostravam tanques na Cinelândia protegidos
por soldados de baioneta calada e lá estava o Popular, com um embrulho embaixo
do braço, examinando as correias de um dos tanques. Pancadaria na Avenida?
Corria polícia, corria manifestante, corria todo mundo, menos o Popular. O
Popular assistia. Cheguei a imaginar, certa vez, uma série de cartuns em que o
Popular aparecia assistindo ao Descobrimento do Brasil, à Primeira Missa, ao
Grito da Independência, à Proclamação da República... Sempre com seu
embrulho debaixo do braço. E de camisa esporte clara para fora das calças. (O
Popular irlandês veste terno e sobretudo contra o frio. O Popular tropical é
muito mais Popular.)
Não se deve
confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O
Transeunte ou Passante às vezes leva uma bala perdida, o Popular nunca. O
Transeunte às vezes vai preso por engano, o Popular é o que fica assistindo à
sua prisão. O Transeunte, não raro, se compromete com os acontecimentos.
Aplaude o visitante ilustre que passa, por exemplo. O Popular fica com as mãos
nos bolsos e quase sempre presta mais atenção ao motociclo dos batedores do que
à figura ilustre. O Transeunte pode se entusiasmar momentaneamente com uma
frase de comício ou um drama na rua, e aí o Popular é que fica olhando para o
Transeunte.
O Popular não
tem opinião sobre as coisas. Quando o rádio ou a televisão resolvem ouvir
“a opinião de um popular” na rua, sempre se enganam. O Popular nunca é o
entrevistado, é o sujeito que está atrás do entrevistado, olhando para a
câmara.
O Popular não
merece nem os méritos nem a calhordice que a imprensa lhe atribui. Alguém que é
“socorrido por populares”, outro, menos feliz, que é linchado por populares...
Engano. Onde há um bando de populares não há o Popular. O Popular é a
antimultidão. Sua única virtude é a sua singularidade. E um certo ceticismo
inconsciente diante da História e das coisas. Não é que o Popular desmereça o
Poder e os grandes lances da Humanidade, é que ele tem uma fatal curiosidade
pelo detalhe supérfluo, um fascínio irresistível pelo insignificante. Nas
revoluções, o que atrai o Popular é a estranha postura de um soldado deitado no
chão, o mecanismo de um tanque, as lentes de uma câmara.
O Popular é
uma figura tipicamente urbana. Não tem domicílio certo. Seu habitat natural é a
margem dos acontecimentos. E — este é o seu maior mistério, a chave da
sua existência — ninguém jamais conseguiu descobrir o que o Popular leva
naquele embrulho. E tem mais. O dia em que pegarem um Popular para desvendarem
um mistério, será inútil. Vão se enganar outra vez. O Popular verdadeiro estará
atrás do preso, assistindo a tudo.
Luis Fernando
Verissimo. O popular. 3.ed. Porto
Alegre: L&PM, 1984, p.11-13. [1ª edição: 1973]
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