Hoje, na sessão de análise, houve algo diferente. Havia uma criança chorando. A criança chorava porque havia sido traída, enganada. Eu perguntei à analista se ela via o susto em meus olhos. Foi quando a criança começou a chorar. Habitando um corpo que deveria ser, com todas as letras, de mulher, a criança não entendeu muito bem o que lhe aconteceu na infância, e o corpo da mulher, num paradoxo, guardou em seus recessos algo dessa criança. Teme perdê-la, como se fosse perder para sempre a chave de um segredo. O paradoxo é este: o corpo é de mulher, mas as questões remetem à infância. Algo falhou. E então é como se o fardo fosse pesado demais para o corpo que foi sempre magro. Não é uma criança chorando porque foi contrariada. É uma criança, pulsando no corpo de uma mulher adulta, dando um brado de socorro por não suportar o nível e o grau de questões que, repentinamente, no emergir da vida adulta, se depositaram sobre seus ombros.
Não sei se algum dia conseguirei ser a mulher que meu corpo sugere. Tudo o que eu sempre quis foi entender minha vida. Está lá, na Carta ao pai, de Kafka, a frase decisiva da minha existência: a preocupação com a afirmação espiritual da existência tornando tudo o mais indiferente. Assim como a afirmação espiritual da existência está no centro das preocupações do filho angustiado, essa frase, mais do que o próprio livro, está no centro da minha angústia, por ter me caído no colo naquele momento em que a vida se decide, se define. Eu sou cheia de desvãos, de esquinas, de passos incertos. Quando comecei a sonhar este mundo que hoje habito, eu era toda esperança, sonho, confiança, sobretudo em mim mesma. Hoje eu sou uma interrogação que olha com insistência para trás, porque lá, no passado, na infância, está alguma coisa muito importante, meu enigma.
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