De volta. Casa nova. Sentia uma falta difusa do blog, mas ao mesmo tempo voltei-me para a casa, para o novo lar, para os arranjos da mudança, para a leitura. Terminei Memórias do cárcere ― na verdade não conseguia parar de ler. Um livro que encerra um paradoxo: pede leitura cerrada, mas da qual é difícil falar, pois o que fala é a leitura, são os signos dispostos de tal forma que se enceta uma narrativa única. Mas a denúncia do cárcere não deixa de apunhalar o leitor, quando se sabe os horrores a que foram submetidos os presos na Colônia Correcional da Ilha Grande, que quase custou a vida de Graciliano, e levou a vida de tantos outros encarcerados:
Chegamos à cancela. E experimentei de chofre a necessidade imperiosa de expandir-me numa clara ameaça. A desarrazoada tentação era tão forte que naquele instante não me ocorreu nenhuma ideia de perigo:
― Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram.
― Pagar como? exclamou a personagem.
― Contando lá fora o que existe na ilha Grande.
― Contando?
― Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
― O senhor é jornalista?
― Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa, sem dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando:
― A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.516.
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