Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Murilo Mendes

FUTURA VISÃO

Apresentaram-me o livro da tua vida
Escrito por dentro e por fora:
Sou digno de romper os sete selos.
Logo na primeira página
Paro três anos em êxtase
Diante da tua fotografia.
A lua e o mar adormecem a meus pés.
Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar teu nome
Berenice! Berenice!
E choro muito
Porque não existe ninguém digno de te olhar.

Alguém me segura à beira do abismo,
Contém minha impaciência e me desarma o braço:
Deverei assistir ao que se descreve no livro.
Terás que parir fisicamente e espiritualmente na desgraça,
Beberás o cálice da injúria e das abominações,
Vestida de púrpura serás sentada no trono da solidão.

Eu devoro o livro, que amarga minhas entranhas.
Glorificai-a! Glorificai-a!
Esta é a minha súplica de sempre.

O Princípio vem sobre as nuvens em fogo
E clama para mim e para todo o universo:
Tudo será perdoado aos que amaram muito.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.308. De “A poesia em pânico”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário