Os sonhos, pelo menos os meus, funcionam como uma
tradução em imagens desconexas daquilo que estou vivendo, e muitas vezes
ingenuamente tentando entender. O que ficou das imagens desta noite, que é
aquilo de que consigo me lembrar, poderia ser significado com a palavra
pertencimento, ou o verbo, pertencer. Tudo é ou não uma questão de linguagem? Não
é, a linguagem está sempre defasada, no encalço. Eu consigo me lembrar apenas
da última imagem (ia dizer final, mas percebi a tempo a armadilha): estou
adentrando por uma estrada que percorri na minha infância, que ia dar num lugar
chamado Grota Funda, que é onde meu pai trabalhava como agricultor. Essa
estrada está diferente, pois dos dois lados erguem-se espécie de choupanas que
são bares, estabelecimentos comerciais noturnos, e então já é a Lapa, mas com a
geografia do bizarro, e eu então me pergunto, embora isso não faça qualquer
sentido, como eu não previ essa mudança no bairro há vinte anos atrás. A pergunta pode estar se dirigindo a outras
geografias, por exemplo as que percorri nos últimos vinte anos, ou, mais
provavelmente, às minhas paisagens, à geografia subjetiva ― afetada, sem
dúvida, pela paisagem e suas transformações. Quando finalmente adentro aquela estrada
e chego, imaginariamente na Grota Funda, geograficamente na Lapa, ocorre-me
então o perigo de aglomerar-me com muitas outras pessoas naquele espaço fechado
à noite, e sinto medo e vontade de sair dali, e isso é já uma decisão. Há ainda
uma cena, resquício da viagem recente, estou agora também no mar, mas o espaço
continua fechado, e uma pessoa de minhas relações que aparenta e diz gostar
muito de mim trata-me com frieza e distanciamento. Será que ela me reconheceu?
Eu podia prever a transformação?
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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