Costuma acontecer de manhã, quando já estou no ônibus
indo para o trabalho. Surpreendo-me rezando o pai-nosso, que às vezes se
prolonga numa ave-maria. É então que acontece a quebra. Não sendo mais um
gesto rotineiro, quando começo a rezar suspendo o movimento, às vezes junto com
a oração, e surpreendo em mim, diferentemente da fé, uma espécie de atavismo,
memória do tempo em que rezar era inseparável da vida — e com isso se diz tudo.
Que esse tempo era bom não há a menor dúvida. É sempre melhor ter fé do que não
tê-la. Então agora tratar-se-ia de uma necessidade da fé? Quase um paradoxo
isso, necessidade da fé, já que a fé não admite questão, e quem questiona não
consegue simplesmente manter a fé, aquela que nos mantém unidos a uma crença ou
religião. Mas não quero aqui começar a raciocinar por hipóteses, nem mesmo
tentar racionalizar o meu gesto rotineiro. Ele tem força e dinâmica próprias,
impõe-se sobre mim, memória de um tempo em que rezar era tão inquestionável
quanto Deus.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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