Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 31 de agosto de 2010

Graciliano Ramos e os modernistas de 22


Trecho da entrevista concedida por Graciliano Ramos a Homero Senna, em 1944:

NUNCA FUI MODERNISTA

― Então, se procurava manter-se tão bem informado a respeito do que se passava no Rio e no resto do mundo, deve ter acompanhado, lá de Palmeira dos Índios, o movimento modernista.
― Claro que acompanhei. Já não lhe disse que assinava jornais?
― E que impressão lhe ficou do Modernismo?
― Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti.
― Não exclui ninguém dessa condenação?
― Já disse: “salvo raríssimas exceções”. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o “Solau do Desamado” é como as “Sextilhas de Frei Antão”. Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do Modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?
Franze a testa, detém-se um instante, mas logo prossegue:
― Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Neto a encarnação da literatura brasileira ― o que era um erro ― fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da coletânea a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: “O Ratinho Tique-Taque”, de Medeiros e Albuquerque; “Tílburi de Praça”, de Raul Pompéia; “Só”, de Domício da Gama; “Coração de Velho”, de Mário de Alencar; “Os Brincos de Sara”, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão idéia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como já disse, à desonestidade. Porque, se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente.
― Quer dizer que não se considera modernista?
― Que idéia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.

SENNA, Homero. República das letras. Entrevista com 20 grandes escritores brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 201-202.

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