Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 27 de fevereiro de 2011

Clarice Lispector: um fragmento (para a Sônia)

É preciso também não perdoar

Uma entrevistadora do programa BBC, Inglaterra, na Hora das Mulheres, falou sobre suas experiências como prisioneira de guerra:
― Quando uma pessoa já experimentou muitos sofrimentos, sabe apreciar as fraquezas e as boas qualidades até mesmo dos próprios inimigos. Por que deve ser nosso inimigo completamente mau, ou a vítima completamente boa? Ambos são criaturas humanas, como o que é bom e o que é mau. E creio que se apelarmos para o lado bom das pessoas teremos êxito, na maioria dos casos.
Sei o que ela quis dizer, mas está errado. Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado, contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é a vítima é permitida, a crueldade e a revolta. E não compreender os outros é que é certo.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.137-138. 

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