Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 17 de março de 2011

periferia do capitalismo

Logo que os acontecimentos no Japão começaram a tomar uma proporção maior que a esperada para um tsunami, ou um desastre natural, um articulista do Uol comparou-os à situação das chuvas no Rio de Janeiro, elogiando a eficiência com que as autoridades japonesas agiram, socorrendo e evacuando rapidamente áreas de risco, ao contrário da morosidade das autoridades brasileiras, que imputaram à natureza (ao excesso de chuvas) a responsabilidade pelas mortes. A comparação é falaciosa. A diferença, no caso, é que o Brasil é periferia do capitalismo, então quase tudo acaba ganhando o carimbo da incompetência: somos incompetentes, figuramos mal nos rankings internacionais de avaliação do desempenho de estudantes, nosso coeficiente Gini é dos mais elevados, acusando alta concentração de renda, os índices de violência e desrespeito aos Direitos Humanos também são alarmantes e, não se pode deixar de mencionar, nossos políticos afrontam cotidianamente a inteligência das pessoas. De forma que a imagem que o Brasil passa deve ser uma espécie de mosaico bizarro onde figuram praias, Rio de Janeiro, carnaval, mulheres bonitas e sensuais (turismo sexual à vista), favelas, floresta amazônica e pobreza, muita pobreza. Um cartão postal para uma visita rápida. Mas aí que, retomando o mote das chuvas de janeiro, proporcionalmente o que está acontecendo no Japão é mais grave, tem consequências de âmbito maior. O Japão é um dos centros do capitalismo mundial, e justamente por isso lá o desastre natural adquiriu um caráter mais alarmante. O fato é que, na periferia ou no centro do capitalismo, a natureza continua sendo acintosamente ignorada. Mas ela está tão viva quanto nós, e as consequências costumam, tal como o abalo sísmico que desencadeou a tragédia no Japão, se fazer ouvir com estrondo e estardalhaço. E então morre-se muita gente, outros tantos entram na conta dos desaparecidos. Passado o estrago, o capitalismo reconstrói-se como eficiência do lucro, e a imprensa passa a cuidar de outro assunto, virando o acontecido coisa do passado. Até que nova tragédia aconteça. O que está escamoteado nisso tudo é que a morte em grande escala está inscrita no capitalismo da mesma forma que a morte miúda, de todo dia, que de tão de todo dia já não causa mais espanto. 

Em tempo: alguém que se disponha a fazer piada com os acontecimentos no Japão precisa procurar um médico, urgentemente. 

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