Mergulhei no Congo junto com Marlow, mas o efeito do filme Apocalypse Now fez-se notar: acabei percebendo umas pequenas tintas de romantismo na trama. Ontem, ao comentar por alto a obra numa das turmas, um aluno disse, sem nunca ter ouvido falar do livro ou da sua adaptação cinematográfica: “É o apocalipse”. Reproduzo um trecho digno de nota, na narração de Marlow, que nunca conseguiu esquecer as últimas palavras de Kurtz, seu por assim dizer epitáfio, súmula de sua passagem pela Terra e dum imponderável qualquer que mira o extremo a que pode chegar a dominação do homem pelo homem, se é que entendi o que li: “O horror! O horror!”.
“O destino. O meu destino! Que coisa engraçada é a vida ― esse arranjo misterioso de lógica impiedosa visando algum desígnio fútil. O máximo que dela se pode esperar é um certo conhecimento de si mesmo ― que chega tarde demais ― uma safra de remorsos inextinguíveis. Já lutei contra a morte. É a luta mais desinteressante que vocês podem imaginar. Ocorre numa insubstancial área cinzenta em que não há nada sob os pés, nada à nossa volta, sem testemunhas, sem clamor, sem glória, sem o grande desejo de vitória, sem o grande medo da derrota, numa atmosfera malsã de morno ceticismo, sem muita confiança no seu próprio direito e menos ainda no da adversária. Se é essa a forma da sabedoria suprema, a vida é um enigma ainda maior do que pensam alguns de nós. Estive a um fio de cabelo da última oportunidade de me pronunciar, e descobri humilhado que provavelmente não teria nada a dizer. E é por isso que afirmo que Kurtz foi um homem notável. Ele tinha alguma coisa a dizer. E disse. Depois que eu próprio tive um vislumbre desse limite extremo, entendo melhor o significado do seu olhar fixo que não conseguia ver a chama da vela mas abarcava todo o universo, capaz de penetrar nos corações que pulsam nas trevas. Ele resumiu ― ele julgou. ‘O horror!’ Foi um homem notável. Afinal, aquela foi a expressão de algum tipo de crença; havia franqueza, havia convicção, havia uma nota vibrante de revolta no seu sussurro, aquela face apavorante revelava uma verdade vislumbrada ― a estranha mescla de desejo e ódio. E não é dos meus próprios momentos extremos que me lembro melhor ― a visão de uma amorfa extensão acinzentada repleta de dor física e de um desdém indiferente pela evanescência de todas as coisas ― e nem mesmo dessa própria dor. Não. São os momentos extremos dele que tenho a impressão de ter vivido. É verdade que ele deu aquele passo derradeiro, foi além da borda, enquanto a mim foi permitido recuar com meus pés hesitantes. E talvez esteja nisso toda a diferença; talvez a sabedoria, e toda a verdade, e toda a sinceridade, só se apresentem comprimidos naquele instante inapreciável de tempo em que ultrapassamos o limiar do invisível. Talvez. Prefiro pensar que o meu resumo não teria sido uma palavra de desdém indiferente. Melhor foi o grito dele ― muito melhor. Foi uma afirmação, uma vitória moral conquistada ao preço de inúmeras derrotas, de terrores abomináveis, de abomináveis satisfações. Mas foi uma vitória. Eis por que permaneci leal a Kurtz até o fim, e mesmo além, quando muito depois tornei a ouvir, não a sua voz, mas o eco de sua magnífica eloqüência que me chegava emitido por uma alma dotada da pureza translúcida de um penhasco de cristal.
CONRAD, Joseph. Coração das trevas. Trad. Sérgio Flaksman. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p.110-111. Em tempo: não conheci outras traduções, mas esta de Sérgio Flaksman está muito boa.
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