Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 1 de janeiro de 2012

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto III, Poemas Relativos, XXVII]

Contemplar o jardim além do odor
e a mulher silenciosa entre os semblantes,
e refazê-los todos, todos antes
que o tempo condenado os atraiçoe.

Porque eu quero, em memória, refazê-los:
flor longínqua, mulher não pertencida,
substância inexistente, móvel vida,
intercessão de nadas e cabelos.

E meus olhos ausentes me espiando
entre as coisas caducas e fugaces
a minha intercessão em outras faces.

Orfeu, para conhecer teu espetáculo,
em que queres senhor, que eu me transforme,
ou me forme de novo, em que outro oráculo?

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. São Paulo: Ediouro, s/d, p.81.

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