...
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte ― veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstrato nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? ― Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.
Sei que minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.
Com grandes dedos eu tocaria as trêmulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar.
Ferveriam os pequenos vulcões dos frutos.
Dentro dos tanques tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar à mesa
da fantasia nocturna
seria para um homem, sob a abóboda da cabeça, como
o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.
― Cada boca pousada sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca.
Herberto Helder. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006, p.30-31.
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