Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 7 de março de 2012

Ana Hatherly

Quem, se eu gritar
me concede
a profundeza inversa deste céu
que ao fim da tarde
eu vejo da minha janela
contemplando os anjos
que as nuvens imitam?

Alguém me ouve se eu gritar?

Oiço vozes
mas são inventadas
porque é inútil perscrutar o silêncio
e por isso vos reinvento
a cada pancada do meu coração
a cada pancada surda
que não repercute
no ímpeto claro do vosso desenho fantástico
no alado lado da vossa impossibilidade.

Se eu gritar
         alguém me ouve
                        em todas estas coisas?
[...]

Ana Hatherly. Rilkeana. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p.29.

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