Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 6 de março de 2012

João Cabral de Melo Neto

LENDO PROVAS DE UM POEMA

Com Rubem Braga, certa vez,
lia em provas Dois parlamentos.
Na manhã ipanema e verão,
em volta do alto apartamento,
sem que carniça houvesse perto,
sem explicação, todo um elenco
de urubus se pôs a rondar
a cobertura, em vôos pensos:
como se farejassem a morte
no texto que estávamos lendo
e se a inodora morte escrita
não fosse esconjuro mas treno.

MELO NETO, João Cabral. Museu de tudo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.100.

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