Lia (o verbo reler, no caso de Clarice, não se aplica),
antes de dormir, a crônica “A descoberta do mundo”, inserta em uma coletânea do
gênero, quando, ao chegar neste trecho, voltei e voltei mais uma vez: “Ou será
que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me
escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos?
(...) Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua
para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos?” Foi então que, um pouco
nebulosamente, foi-se me revelando um dado, talvez o que faltava, de um enigma
de minha história pessoal — não digo “o enigma” porque seria subestimar a vida.
Eu entendi, eu encontrei a peça que faltava, não de maneira clara e lógica e
cristalina, mas como essas coisas conseguem se dar ao nosso entendimento. E
então jorraram imagens durante a noite, que confirmaram minha cegueira.
Talvez então isso que Clarice disse possa ter algum sentido para mim: “Porque
eu sempre soube de coisas que nem eu mesma sei que sei.” Clarice Lispector é
única. E eu não sei se alguma coisa está melhor hoje pelo fato dessas coisas se
terem dado, mas entender junto com
Clarice Lispector é conhecer sem se brutalizar.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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