O tom geral do ensaio de 1926 de Sérgio Buarque de Holanda, “O lado oposto e outros lados”, gerou muita polêmica nos arraiais modernistas, expondo divergências e ressentimentos. Manuel Bandeira e Mário de Andrade divergiram a fundo sobre as posições de Sérgio Buarque, e isso aparece na sequência de cartas trocadas entre ambos no período, um documento precioso para a apreensão dos bastidores da polêmica. Além de tudo, parecia estar em jogo a liderança do Modernismo, que o ensaio de Sérgio não faz pensar que ele estivesse chamando para si, pois tencionava exercer, no melhor sentido em que o compreendia, a crítica. O modo com que Sérgio Buarque e Prudente de Moraes, neto entendiam a crítica encontrou reservas em Mário de Andrade, que em carta a Manuel Bandeira comenta o tom geral do ensaio de Sérgio Buarque:
Eu tenho feito em artigos muita restrição ao Gui e ao Ronald restrição que não aceitaram ou que discutiram porém não brigaram comigo. Porém quando citei a frase de você foi pra chamar sua atenção sobre uma coisa: é que Prudentico principalmente inda mais que o Sérgio quando escrevem contra dão pras frases um ar de ataque que fere. Fazem a restrição com uma secura uma aspereza que pode ser peculiar neles porém faz com que os outros caiam na ideia do ataque. Sobre isso já me preveni bem porque sei que me atacarão e si o ataque vier assim não me ressentirei porque pode ser feitio deles. [...] Pra quê? E mesmo certo de que isto não é obrigação de elogio mútuo eu pergunto pra você se não é verdade que essa não é a maneira de tratar um trabalho ruim de um camarada. Eu quando tenho um camarada procuro lhe ocultar os defeitos e quando sou obrigado a reconhecer estes, os reconheço porém amigavelmente. E creio que não sou nenhuma exceção. [ANDRADE e BANDEIRA, 2001, p. 323. Os apelidos aludem a Prudente de Moraes, neto e Guilherme de Almeida]
De maneira geral, as reservas de Mário de Andrade estendem-se do tom ao conteúdo do ensaio, ao contrário de Manuel Bandeira. Ao final da sequência de cartas em torno da polêmica, Manuel Bandeira sintetiza bem quais seriam as possíveis razões para a atitude mais desbragada de Sérgio Buarque e Prudente de Moraes face à crítica literária e aos rumos então tomados pelo Modernismo:
O “nós” do Sérgio, tomei por ele, Prudente e outros da idade deles que não suportam o verbalismo do R., do G. e outros. A respeito de verbalismo, penso como você. Há verbalismo e verbalismo. Euclides, êta! Aprecio às vezes o de R. e Gui, sem achá-los tão maravilhosos quanto você. Sempre defendi sozinho contra Oswald, Sérgio, Prudente, e outros a arte, a técnica fantástica do Gui. Mas realmente, Mário, os rapazes sinceramente não fazem caso nenhum disso. No fundo eu dou razão a eles, mas como o gosto é livre eu continuo a admirar o tour de force criador rítmico do Guilherme fazendo ritmo de 11 sílabas com qualquer quantidade de sílabas, como ele faz em “Raça”. Mas reconheço que é arte, e poesia é outra coisa. [...] A poesia do R. é bela, porém me dá a impressão de arte decorativa de motivos socializantes. Boa pra se comentar mas... não faz a gente “dar nos gostos”. Aliás a “gente” está aí por “me”: eu sei, e compreendo bem, que você, o Ribeiro Couto gostam da poesia do R. e são sinceros. Já o R. C. não tolera a do Guilherme. O que atrapalha tudo é essa história de modernismo. Que coisa pau! Parece uma putinha intrigante que apareceu para desunir os amigos. Ninguém sabe definir essa merda, que todo mundo quer ser! Isso sempre me aporrinhou. Não tem a menor importância ser modernista! Vamos acabar com isso? [ANDRADE e BANDEIRA, 2001, p. 327. Os apelidos e abreviações aludem a Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida]
Na fala de Manuel Bandeira, pelo menos três elementos chamam a atenção: primeiramente, a diferença de gerações dentro do próprio Modernismo, fazendo com que os mais jovens tivessem uma posição mais aguerrida e combativa que os demais, a par de concepções de literatura e arte não totalmente esposadas por Guilherme de Almeida, por exemplo, inegavelmente um poeta da outra geração. Então, na visão de Sérgio Buarque e Prudente de Moraes, neto, ele também seria um “passadista”, embora isso não seja declarado. O segundo elemento é a distinção entre poesia e arte que Manuel Bandeira propõe, distinção dificílima no contexto em que é enunciada, por sugerir que os dois poetas referidos ― Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho ― poderiam ser bons versejadores, bons poetas no sentido mais tradicional do termo, mas não no sentido moderno que a palavra poesia passou a comportar. Por fim, o terceiro elemento seria justamente a discussão do que seria moderno em arte, e a polêmica em torno do ensaio de 1926 sugere que os principais nomes do Modernismo não tinham muita clareza acerca disso, e cada qual estava tateando seu caminho, tentando em maior ou menor grau ser moderno. E parece que justamente quanto maior a preocupação em sê-lo, menor o efeito alcançado, como se pode depreender da última frase de Manuel Bandeira, poeta modernista por excelência, mas que parecia dar pouca importância ao rótulo. Ou seja, a adesão epidérmica aos pressupostos estéticos do Modernismo não poderia funcionar como garantia de produção poética de qualidade, num contexto em que praticamente tudo estava em discussão, inclusive os tais pressupostos.
ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira. 2. ed. Org., introdução e notas Marcos Antonio de Moraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Instituto de Estudos Brasileiros/USP, 2001.
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