Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

Manuel Bandeira / James Joyce

Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto, distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.155. 


“O senhor Bloom entrou e sentou no lugar vago. Puxou a porta após si e bateu-a firme que fechasse firme. Atravessou um braço pela alça e mirou com seriedade pela janela aberta da carruagem para as cortinas abaixadas da avenida. Uma suspensa ao lado: uma velhinha espiando. Nariz alviachatado contra a vidraça. Agradecendo à sua estrela ter sido poupada ainda. Extraordinário o interesse que tomam por um cadáver. Alegres de nos ver partir damos-lhes tamanho trabalho chegando. A tarefa parece convir-lhes. Pisque-dizque pelas esquinas. Pisar perto em pontinhas de pé de medo que se desperte. Então é deixá-lo pronto. Aviá-lo. Molly e a senhora Fleming preparando a cama. Puxe-o mais para o seu lado. Nossa mortalha. Nunca se sabe quem te aviará morto. Lavar e pentear. Creio que lhes cortam unhas e cabelos. Guardam um tico num envelope. Crescem do mesmo modo depois. Tarefa suja. [...] Todos esperavam. Então rodas foram ouvidas de desde a dianteira girando: depois mais perto: depois cascos de cavalos. Uma parada. A carruagem deles começava a andar, rangendo e balançando. [...] Todos olharam por instante pelas suas janelas bonés e chapéus retirados pelos passantes. Respeito. A carruagem derivou dos trilhos para a estrada mais macia depois da alameda de Watery. O senhor Bloom contemplativo viu um jovem esbelto, coberto de luto, chapéu amplo.”
                                                                                                                    
JOYCE, James. Ulisses. Trad. Antônio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 104-105.

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