Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Luiz Ruffato

46. O prefeito não gosta que lhe olhem nos olhos

Isso ficamos sabendo logo no primeiro dia. O doutor Abdala, chefe do cerimonial, reuniu o pessoal da copa e avisou, Não vai ter perseguição não, eu garanto. “Ele” (quando o doutor Abdala falava “Ele”, imediatamente olhava para cima, e nós também, como se o prefeito estivesse observando a gente) “Ele” sabe que nem todos votaram nele. E daí? O que importa é o trabalho! É o que cada um sabe fazer de melhor. Portanto, não se preocupem, ninguém vai forçar ninguém a ir embora. Os que não se encaixarem nas novas normas serão transferidos. E só. E, simpaticão, continuou a discursama, chamando nós de “colega”, batendo no ombro de um e outro, explicando tintim por tintim as mudanças que “Ele” ia fazer na cidade, politicou, quando nem precisava, o homem já estava eleito mesmo, e falou que o prefeito era um sujeito legal, que ia acabar com a roubalheira, ia fazer uma administração voltada pros mais carentes, e que o prefeito e os funcionários da municipalidade, disse, éramos tudo uma coisa só e explicou finalmente do quê que o prefeito gostava e do que não gostava: que o café tinha que ser muito quente, pelando, nunca requentado, “Nunca!, entendido?”, com cinco gotas de adoçante Assugril, não se esqueçam, “Ele morre de medo de engordar!”; às vezes “Ele” tem uma dor de cabeça terrível, e nesses casos duas Neosaldinas, um copo de água fresca, “Vejam bem, fresca!, não gelada, fresca!”; a hora do almoço é sagrada, uma e meia da tarde, nem um minuto a mais, que isso deixa ele furioso; de sobremesa, uma fatia de abacaxi gelado, sem caroço, dividido em seis partes iguais, “Entenderam?, seis partes iguais! Meçam, se for preciso, mas as partes têm de ser rigorosamente iguais!”, e acompanhando o prato apenas um guardanapo, “Um!”, um garfo, uma faca; à tarde, o prefeito toma um lanchinho às três e meia, recomendação médica, problemas de gastrite, um comprimido de ranitidina com um gole de água... “... Fresca!, isso mesmo!”, uma bolacha de água-e-sal com chá, “Mas, pelo amor de deus, chá preto nunca!”, ervas naturais nacionais, erva-doce de preferência; quando “Ele” tiver de ficar até tarde no gabinete, deve mastigar alguma coisa antes do jantar, que não acontece antes das nove da noite, mas com esse vocês não precisam se preocupar, porque geralmente a última refeição “Ele” faz em restaurante, decisões ainda por tomar, algo ainda para discutir, “O prefeito atende pelo nome de trabalho”, “Ele” é desses sujeitos que gostam de tudo direito, preto no branco, “Então, amigos... Então, colegas: nada de fofoquinhas pelos corredores! Ao trabalho!” Por isso é esquisito esse falatório todo, esse tititi, que “Ele” tem conta no exterior, que “Ele” comprou um apartamento triplex nos Jardins, que “Ele” é o chefe da quadrilha que roubava os cofres da prefeitura... Pra mim, “Ele” é igual a todos os outros que passaram por aqui. E a mulher dele, dona Janice, é uma ótima pessoa. Veio aqui uma vez ver como o marido dela é tratado, gostou muito, comentou comigo até. Na época, o Taquinho estava desempregado, falei, a senhora me desculpe, mas, já que deu a liberdade, será que não arruma uma colocação pro meu afilhado, menino bom, trabalhador, mas não consegue emprego em lugar nenhum, por causa de que só tem o primário, coitado, Vamos ver, ela falou, e pediu pra assessora dela, doutora Andreza, anotar meu nome e solicitação. Passou tempos, já tinha até entregue a Deus, quando me chamaram no telefone, o chefe de gabinete da Administração Regional do Campo Limpo falou pro Taquinho se apresentar, “munido da carteira de trabalho”, no dia seguinte. Agora, está feliz da vida, todo mundo respeita ele: é o encarregado de conduzir o povo pra lá e pra cá pra bater palmas e na hora certa gritar o nome do prefeito e carregar “Ele” nas costas em troca de lanche com refresco e mais uma caixinha, cujo valor depende do dia e da importância do negócio. O Taquinho, que é assim uma espécie de segurança, já esteve várias vezes perto-pertinho do prefeito e confirmou: é proibidíssimo olhar pros olhos dele.

RUFFATO, Luiz. eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p.96-98.

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