Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

"O lado oposto e outros lados" - Sérgio Buarque de Holanda (1926)

O LADO OPOSTO E OUTROS LADOS

Qualquer pessoa que compare o Brasil intelectual de hoje com o de dez anos atrás não pode deixar de observar uma divergência apreciável entre os dois momentos, não só nos pontos de vista que os conduzem como ainda mesmo nos indivíduos que os exprimem. Não quero insistir na caracterização dessa divergência, que me parece profunda, nem vejo em que poderia ser útil mostrando o motivo que me leva a preferir um ao outro.
Está visto que pra mim os que exprimem o momento atual neste ano de 1926 contam muito mais do que os de 1916. A gente de hoje aboliu escandalosamente, graças a Deus, aquele ceptismo bocó, o idealismo impreciso e desajeitado, a poesia “bibelô”, a retórica vazia, todos os ídolos da nossa intelligentsia, e ainda não é muito o que fez. Limitações de todos os lados impediam e impedem uma ação desembaraçada e até mesmo dentro do movimento que suscitou esses milagres têm surgido germens de atrofia que os mais fortes já começam a combater sem tréguas.
É indispensável para esse efeito romper com todas as diplomacias nocivas, mandar pro diabo qualquer forma de hipocrisia, suprimir as políticas literárias e conquistar uma profunda sinceridade pra com os outros e pra consigo mesmo. A convicção dessa urgência foi pra mim a melhor conquista até hoje do movimento que chamam de “modernismo”. Foi ela que nos permitiu a intuição de que carecemos, sob pena de morte, de procurar uma arte de expressão nacional.
Não se trata de combater o que já se extinguiu, e é absurdo que muitos cometem. Mesmo em literatura os fantasmas já não pregam medo em ninguém. O academismo, por exemplo, em todas as suas várias modalidades ― mesmo o academismo do grupo Graça Aranha-Ronald-Renato Almeida, mesmo o academismo de Guilherme de Almeida ― já não é mais um inimigo, porque ele se agita num vazio e vive à custa de heranças. As figuras mais representativas desse espírito acadêmico e mesmo as melhores (como é o caso dos nomes que citei) falam uma linguagem que a geração dos que vivem esqueceu há muito tempo.
Alguns de seus representantes ― refiro-me sobretudo a Guilherme de Almeida e a Ronald de Carvalho ―, graças  a essa inteligência aguda e sutil que foi o paraíso e foi a perda da geração a que eles pertencem, aparentaram por certo tempo responder às instâncias da nossa geração. Mas hoje logo à primeira vista se sente que falharam irremediavelmente. O mais que eles fizeram foi criar uma poesia principalmente brilhante: isso prova que sujeitaram apenas uma matéria pobre e sem densidade. De certo modo continuaram a tradição da poesia, da literatura “bibelô”, que nós detestamos. São autores que se acham situados positivamente do lado oposto e que fazem todo o possível para sentirem um pouco da inquietação da gente da vanguarda. Donde essa feição de obra trabalhada conforme esquemas premeditados, essa ausência de abandono e de virgindade que denunciam os seus livros. Toda a América e Raça seriam talvez bem mais significativos para a gente se não fosse visível a todo o momento a intenção dos seus autores de criarem dois poemas geniais. Essa intenção é sobretudo manifesta em Toda a América. É um dos aspectos que tornam mais lamentável e pretensioso o movimento inaugurado pelos nossos acadêmicos “modernizantes”. Houve um tempo em esses autores foram tudo quanto havia de bom na literatura brasileira. No ponto em que estamos hoje eles não significam mais nada para nós.
Penso naturalmente que poderemos ter em pouco tempo, que teremos com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais que evidente, de nossa vontade, nascerá muito mais provavelmente de nossa indiferença. Isso não quer dizer que nossa indiferença, sobretudo nossa indiferença absoluta, vá florescer por força nessa expressão nacional que corresponde à aspiração de todos. Somente me revolto contra muitos que acreditam possuir ela desde já no cérebro tal e qual deve ser, dizem conhecer de cor todas as suas regiões, as suas riquezas incalculáveis e até mesmo os seus limites e nos querem oferecer essa sobra em vez da realidade que poderíamos esperar deles. Pedimos um aumento de nosso império e eles nos oferecem uma amputação. (Não careço de citar aqui o nome de Tristão de Athayde, incontestavelmente o escritor mais representativo dessa tendência, que tem pontos de contato bem visíveis com a dos acadêmicos “modernizantes" que citei, embora seja mais considerável.)
O que idealizam, em suma, é a criação de uma elite de homens, inteligentes e sábios, embora sem grande contato com a terra e o povo ― é o que concluo por minha conta; não sei de outro jeito de se interpretar claramente o sentido de seus discursos ―, gente bem-intencionada e que esteja de qualquer modo à altura de nos impor uma hierarquia, uma ordem, uma experiência que estrangulem de vez esse nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo. Carecemos de uma arte, de uma literatura, de um pensamento enfim, que traduzam um anseio qualquer de construção, dizem. E insistem sobretudo nessa panacéia abominável da construção. Porque para eles, por enquanto, nós nos agitamos no caos e nos comprazemos na desordem. Desordem do quê? É indispensável essa pergunta, porquanto a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei morta, que importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo. É preciso mandar buscar esses espartilhos pra que a gente aprenda a se fazer apresentável e bonito à vista dos outros. O erro deles está nisso de quererem escamotear a nossa liberdade que é, por enquanto pelo menos, o que temos de mais considerável, em proveito de uma detestável abstração inteiramente inoportuna e vazia de sentido. Não me lembro mais como é a frase que li num ensaio do francês Jean Richard Bloch e em que ele lamentava não ter nascido num país novo, sem tradições, onde todas as experiências tivessem uma razão de ser e onde uma expressão artística livre de compromissos não fosse uma ousadia inqualificável. Aqui há muita gente que parece lamentar não sermos precisamente um país velho e cheio de heranças onde se pudesse criar uma arte sujeita a regras e a ideias prefixados.
Não é para nos felicitarmos que esse modo de ver importado diretamente da França, da gente da Action Française e sobretudo de Maritain, de Massis, de Benda talvez e até da Inglaterra do norte-americano T. S. Elliot comece a ter apoio em muitos pontos do esplêndido grupo modernista mineiro de A Revista e até mesmo de Mário de Andrade, cujas realizações apesar de tudo me parecem sempre admiráveis. Eu gostaria de falar mais longamente sobre a personalidade do poeta que escreveu o Noturno de Belo Horizonte e como só assim teria jeito pra dizer o que penso dele mais à vontade, pra dizer o que me parece bom e o que me parece mau em sua obra ― mau e sempre admirável, não há contradição aqui ―, resisto à tentação. Limito-me a dizer o indispensável: que os pontos fracos nas suas teorias estão quase todos onde elas coincidem com as idéias de Tristão de Athayde. Essa falha tem uma compensação nas estupendas tentativas para a nobilitação da fala brasileira. Repito entretanto que a sua atual atitude intelectualista me desagrada.
Nesse ponto prefiro homens como Oswald de Andrade, que é um dos sujeitos mais extraordinários do modernismo brasileiro; como Prudente de Moraes Neto; Couto de Barros e Antônio de Alcântara Machado. Acho que esses sobretudo representam o ponto de resistência necessário, indispensável contra as ideologias do construtivismo. Esses e alguns outros. Manuel Bandeira, por exemplo, que seria para mim o melhor poeta brasileiro se não existisse Mário de Andrade. E Ribeiro Couto que com Um homem na multidão acaba de publicar um dos três mais belos livros do modernismo brasileiro. Os outros dois são Losango cáqui e Pau-Brasil.

Revista do Brasil, 15/10/1926, p.9-10.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra. Estudos de crítica literária I, 1920-1947. Organização, introdução e notas Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 224-228.

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