Retrato de Vinicius
(entrevista a Sérgio Buarque de Holanda por Caio Túlio Costa)
Conheci o Vinicius, mesmo, fora de qualquer ligação intelectual literária; bom, ele já tinha publicado livros, eu não tinha publicado nenhum, embora fosse mais velho que ele. Tenho o segundo livro dele com uma dedicatória de 1935, e não era de um sujeito conhecido na hora não, era de uma pessoa que já conhecia antes. Pelo jeito da dedicatória se vê que não era novidade. De modo que pelo menos há 45 anos o conhecia. Eu ia muito ao Rio, durante algum tempo morei no Rio e ele vinha muito a São Paulo; no estrangeiro também nos encontramos várias vezes. Encontrei com ele na Itália, ele vinha em casa todas as noites tocar violão. Tenho a impressão que o Chico daí que pegou a coisa da música, ele ia escutar o Vinicius, e escondido, na hora em devia estar dormindo. Tinha oito anos (o Chico foi para a Itália com oito anos e voltamos quando ele tinha dez anos), ficava muito aceso, o Vinicius pensava que ele ia dormir, mas ele vinha escondido e mais de uma vez eu vi o Chico escondido para ouvir as músicas do Vinicius.
Vinicius foi a única pessoa que batizou uma das filhas do Chico, a mais velha, Silvia; que nasceu quando ele estava mais ou menos exilado na Itália. Ele não podia voltar para cá, foi em 1969. Lá nasceu a Silvia, tenho até uma gravação feita pelo poeta Ungaretti, que foi à casa de saúde:
― Sérgio, tu nipottina é bella!...
Faz um bruta elogio. Foi o Vinicius quem me trouxe a gravação do Ungaretti, eles estavam juntos lá.
A poesia dele é uma poesia coloquial... Ainda outro dia ouvi o Carlos Drummond falando. A gente não pode recitar a poesia dele assim com um tom poético, tem de ser uma coisa quase coloquial. Mas ele não começou assim. Na faculdade de direito, no Rio, ele tinha uma turma de colegas que depois ficaram importantes e numa posição totalmente diferente da dele, eram o Santiago Dantas que depois foi integralista; o Américo Jacobina Lacombe, o Octavio de Faria (este fez um livro sobre um livro de poemas de Vinicius); o Hélio Viana, todos do grupo chamado Caju. Mas ele logo se emancipou disto e foi para o lado oposto, até. A partir daí ele entrou para o lado da boemia. Começou a não ligar para a direita, era contrário, e conseguiu uma popularidade que raras pessoas hoje possuem. Ele tinha aquele jeito de tratar todo mundo com um certo charme pessoal.
Eu me lembro quando morávamos na Itália, tinha um amigo nosso que era Cônsul Geral em Roma, a mãe dele estava lá. Então ele deu uma reunião para vários cineastas. Tinha muitos, inclusive estudantes de cinema como o Rudá, filho do Oswald de Andrade. Convidaram o grupo para ir lá à noite. Para jantar convidaram-nos o Vinicius, minha mulher e eu porque a mesa era pequena para todo aquele pessoal. A mãe do anfitrião pediu por isso, que nós três fôssemos mais cedo. Já passava das nove horas quando o Vinicius chegou, atrasado, e sentou ao lado da senhora, e num instante quebrou-se o gelo.
― Mas que homem... ― ela dizia, esquecida do atraso. Ele agradava às pessoas, mas não agradava de propósito, era a maneira dele, naturalmente assim.
Depois ele passou para música, aí foi demitido do Itamaraty, no tempo do Costa e Silva; pediram que ele não fizesse mais shows, ou então largasse o Itamaraty.
― Então eu largo ― ele disse. Não, não foi cassado, foi uma coisa individual: não poder tocar a música que ele gostava.
O Vinicius passou dois meses em Roma, antes de assumir em Paris e ia todo dia em casa, eu era professor, dei curso na universidade. Ele ficou num hotel da Via Vittorio Veneto, onde se reuniam os atores, eu conto neste prefácio [do Operário em construção e outros poemas, Nova Fronteira] que cheguei um dia lá e o encontrei ao lado de Irene Papa (aquela do filme Z).
Numa dessas ocasiões apareceu um camarada mineiro, filósofo, que morreu agora. Era um sujeito muito diferente do Vinicius, muito sério. Ele e o Vinicius não davam certo. Não sei bem por que, pois o Vinicius tinha uma facilidade de se dar bem com as pessoas. Eu disse ao camarada: “Não o convido hoje porque já tenho compromisso”; era o Vinicius. “Vamos deixar para amanhã”.
― Não, amanhã vou jantar com o Cristiano Machado, embaixador no Vaticano, pode ser para depois de amanhã? ― foi a resposta. Eu disse que em princípio podia ser.
Aí chegou o Vinicius e eu disse que o camarada estava com vontade de vir, mas achei que os dois não combinavam bem, tão diferentes que eram, o outro era um sujeito brigão, tinha sido até boxeur. O Vinicius disse que eu tinha razão:
― Não vou com aquele sujeito não.
É raro ele ficar assim com outras pessoas. No dia seguinte o Vinicius apareceu e eu o lembrei que o camarada viria no outro dia. Disse ao Vinicius: se você quiser vir, venha, mas eu estou avisando: ele vem amanhã. No dia seguinte aparece o Vinicius. Aí eu disse: ah! você veio, né? Tá bem. O outro chegou tarde, às 9 horas, e jantamos juntos. Ele falando o tempo todo, metendo o pau numa moça que trabalhava num escritório comercial em Paris, onde ele teve que fazer qualquer coisa. E o Vinicius num silêncio mortal. Depois que ele saiu perguntei a razão daquele silêncio:
― Eu estava aqui, só não dei nele porque ele estava na sua casa.
― Mas por quê? ― eu perguntei.
― Porque ele estava falando mal de uma mulher.
― Mas você conhece a mulher?
― Não, eu não conheço, mas falar mal de mulher é coisa que não suporto.
Ele não admitia que ninguém falasse mal de mulher, fosse quem fosse. De modo que ele era assim um pouco desse jeito. Estávamos certa ocasião na casa de um dos grandes amigos dele daqui em São Paulo, o Zequinha Marques da Costa. Certa hora ele se levantou e foi lá para dentro. Nesse momento o Zequinha me convidou para ver alguns quadros que tinha lá. Entramos, vi um quarto.
― Ali deve estar dormindo o Vinicius ― disse o Zequinha ― evitemos falar alto quando passarmos por lá.
Passamos então pelo quarto enorme, uma cama de casal, e o Vinicius no meio dormindo. Eu disse: olha aqui, vamos fechar essa luz. E o Zequinha respondeu:
― Não, não, não, o Vinicius não quer. Ele quer a luz acesa porque assim fica com a impressão de que tem gente.
Ele morreu assim, com quantidade de gente em volta. Dizem que só no apartamento dele foram mais de mil pessoas sem estar avisadas. Havia toda aquela gente chorando, amigos...
Mas os médicos achavam que ele não ia durar muito não. Tinha diabete, inclusive; não parava de beber. Quando fiz essa coletânea [Operário em construção e outros poemas, Nova Fronteira] fui ao Rio, estava no hotel, o Vinicius foi lá para ver. Aí eu pedi um uísque e disse: eu não peço para você porque você não pode tomar.
― Uísque não ― respondeu ―, mas tomo vinho branco.
― Mas não faz mal?
― Não, o médico disse que não.
Sabe, enquanto nós estivemos lá (a última mulher dele, Gilda de Queirós Mattoso, também estava) ele tomou cinco garrafas de vinho branco. Bom, eu tomei um bocadinho, mas o grosso foi ele quem tomou.
Quanto aos poemas eu gosto de muita coisa dele. Quando comecei a fazer esta antologia ele queria tirar as poesias que têm música. Mas depois ele mesmo achou uma como este Samba em prelúdio. Às vezes eu gosto de uns poemas dele, às vezes gosto de outros. Gosto muito do Soneto da fidelidade, onde ele fala do amor, que “não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Ele costumava dizer de brincadeira que mulher para ele dura três anos. Depois tem que mudar...
Este livro da Nova Fronteira foi quem pediu (sic) que eu fizesse uma antologia, uma introdução crítica. Agora não estou fazendo crítica literária, então resolvi fazer uma coisa sobre ele, a pessoa dele. Destas poesias faltam algumas que numa certa hora se perderam, em parte. Eu não sabia nem como construir e pedi que o Vinicius completasse, não incluí exatamente o Soneto da fidelidade. Fiz a seleção e este estava na outra lista, que se perdeu. Escolhi de diversos lugares, tem um soneto dedicado ao Neruda, foi o Vinicius quem me deu para sair aí, mas este não é um soneto novo, é antigo. Ele fez para o Neruda depois que ele chegou aqui. Havia perdido o soneto, de modo que não incluiu nos outros livros dele; é uma resposta ao Pablo Neruda. Ele o encontrou pouco depois e disse:
― Vamos publicar por causa disso.
É uma coisa inédita. Depois ele fez outro soneto para o Neruda, diferente deste. Queria publicar este aí porque era praticamente inédito. A outra parte disto foi uma antologia que saiu em Portugal, ele achava muito boa. Foi dali que eu tirei muita coisa, mas devolvi-lhe o volume português porque ele não tinha outro exemplar. Foi ele quem escolheu o título do livro. Eu ia fazer uma escolha, Antologia, qualquer coisa assim. Por ocasião da greve em São Bernardo ele foi lá e recitou isso para os operários. A letra tem algumas coisas sutis, muito sutis, como a história da tentação de Cristo pelo diabo. Mas o Lula, pelo menos, gostou muito.
No começo de sua carreira Vinicius jamais se indispôs pessoalmente com o grupo Caju, mas encontrou amigos do outro lado, grandes amigos, como o Rubem Braga, o Fernando Sabino, o Paulo Mendes Campos e o Otto Lara Resende ou os mais velhos, como Manuel Bandeira e Drummond. A poesia dele começou com a influência desse grupo, espiritualista. Não chegava a ser fascista não, embora alguns se fizessem integralistas, mas ele nunca foi isto não, foi até o contrário.
Os primeiros dois livros têm este lado individualista e meio espiritual, Caminho para a distância e Forma e exegese. Ele era muito moço ainda. Depois tem Ariana, a mulher, aí ele já estava mudando, foi tomando um tom mais lírico, mais amoroso, mais material talvez.
Os primeiros livros são desta fase espiritualista, depois ele descobriu que não era aquilo não, que gostava era de mulher. No meio dos primeiros tem muita coisa bonita, mas eram muito diferentes. Esta poesia lírica, junto com o Drummond e o Bandeira, formou uma espécie de trindade na poesia brasileira. O Murilo Mendes também tem um pouco. Uma tendência assim um pouco coloquial. A marca da experiência inglesa de Oxford parece-me ter sido decisiva para ele.
O traço social é visível em Operário em construção, é um pouco. Acho que ele estava caminhando para este lado, mas tinha muito o lado lírico, mulher no meio. Tinha as duas formas. Só as duas?
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA: Encontros. Org. Renato Martins. Beco do Azougue, 2009, p. 168-173. (Publicado originalmente em Leia Livros, 1980)
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