Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Clarice Lispector: o cavalo-marinho entre a ilha e o mar


[...]
Falarei sobre uma coisa muito boa: sobre uma ilha.
Vocês gostariam de ter uma ilha só para cada um de vocês e para os seus amigos? Eu gostaria muito e não tenho.
Mas uma amiga minha comprou uma ilha só para ela e os amigos descansarem. Vocês sabem bem o que é uma ilha?
É um pedaço de terra cercado de água por todos os lados.
Eu queria que vocês fossem fazer uma visita comigo à ilha de minha amiga. Vocês poderiam tomar banho de mar, caçar bichos, e de noite iam dormir numa rede. Vocês não iam ter medo porque eu ia dormir no mesmo quarto, protegendo cada menino e cada menina.
No mar dessa ilha tem de tudo: todas as espécies de peixes. Até cavalo-marinho tem. Ver um cavalo-marinho nadar é lindo: parece até com homens e mulheres dançando devagar.
Essa ilha é um pouco encantada.
Por quê? Pelo ar sempre novo, pelo capim chamado sapê que parece cantar ao vento, pela cidade das borboletas.
Minha amiga e um grupo de amigos dela estavam explorando a ilha, e no meio de um bambual encontraram a cidade das borboletas. Nessa clareira elas vivem, voam alto, voam baixo, voam ao redor de nós. Pequenas, grandes, azuis, amarelas e de todas as cores.
Parecia um bailado de borboletas naquele silêncio que só uma ilha tem.
O silêncio da ilha é um silêncio diferente: é atravessado pelos sons característicos dos habitantes animais e vegetais. Planta, se a gente pegar com jeito, as folhas delas parecem cantar. E falam com a gente. O quê? Depende de a gente estar triste ou alegre, com fome de beleza e de conversa.
Minha amiga comprou a ilha para lá morarem durante um tempo as crianças um pouco tristes que ainda não tinham conversado com plantas e animais. Um cavalo-marinho recebeu minha amiga no banho de mar.
No fundo do mar lá é azul e de todas as outras cores também por causa dos ouriços coloridos e das estrelas-do-mar e pelas algas que se movem dando esse colorido ondulante.
Vocês pensam que estou inventando?
Mas, se eu jurar por Deus que tudo o que contei neste livro é verdade, vocês acreditam? Pois juro por Deus que tudo o que contei é a pura verdade e aconteceu mesmo. Eu tenho respeito por meninos e meninas e por isso não engano nenhum deles.
Bem, obrigada por terem acreditado em mim. Não gosto de passar por mentirosa.
Além dos cardumes de peixes pequenos e grandes, no mar da ilha também tem cardumes de botos ou delfins: parecem com uma baleia pequena.
Os bichos da terra são pássaros de todas as cores e tamanhos. Também tem na ilha muita cobra e muito lagarto. A casa da ilha fica de portas e janelas fechadas contra mosquitos, lagartos e cobras. Tem também manadas de antas.
A ilha é tão grande que a dona dela ainda não conheceu tudo. E tem uma parte selvagem que nunca foi explorada.
A parte encantada são os brinquedos no mar de noite: desde a pesca com luz de lanterna até o mergulho todo iluminado pela fosforescência das plantas do mar. Peçam à gente grande para explicar o que é fosforescência.
As frutas são jaca, caju, cajá, graviola, bananas. E dos coqueiros altíssimos caem cocos à beça, até em cima da gente se não se toma cuidado. Tem também goiabas das brancas e vermelhas, e pitangas escarlates.
A água para beber foi canalizada com os bambus enormes da ilha.
É uma ilha tão encantada que eu teria medo de ficar sozinha de noite na minha rede. Nessa ilha tem todas as espécies de árvores, plantas, frutas e flores.
Morar numa ilha para sempre é triste porque a gente não quer se separar da família e dos amigos. Mas não precisamos morar lá. Basta passar sábado e domingo.
Bem, vamos deixar a ilha em paz, e voltar para os bichos. Eu tenho uma amiga que tem um cachorro que late tanto e tão alto que já me deu vontade de latir de volta.
[...]

LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes [trecho].___. O mistério do coelho pensante e outros contos. Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2010, p.44-47. Imagem obtida aqui. Fonte original: Hubblesite.

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