Pela manhã, cumpre organizar a parte organizável dos sonhos, os restos da noite. Confusão de imagens e situações, lampejos que ficam só no lampejo. Essa outra vida que se vive ao migrar placida-mente para o território da noite, vida intensa de imagens e acontecimentos quase paupáveis, interditos que se abrem, em graus variáveis de interdição, à consciência. Pela manhã decantam-se fragmentos de sonhos, entre o interdito e o desejo de trazer para o dia a noite adentrada pela consciência, mar pouco navegável, rio a fluir enquanto a noite de cada dia leva a estranhos domínios do ser, como uma casa que tivesse aposentos secretos, mas que só fosse possível saber deles e entrevê-los enquanto se dorme e sonha. Cada manhã, então, é o retorno de incursões a esses aposentos, para os corredores claros da casa, trazendo, no entanto, como enigma, as sobras e sombras da passagem por eles. O que se consegue trazer para o dia são as sombras dos sonhos, e mesmo isso é difícil de dizer, porque é outra coisa, e as sombras são fugidias, dependentes da luz, mas a noite é a ausência da luz. Então a luz do dia projeta-se sobre a noite, e consegue-se entrever os sonhos que esta luz permite atravessar, como uma fronteira, da noite para o dia.
The Enigma of a Day, Giorgio De Chirico
[imagem obtida aqui]
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