Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 4 de setembro de 2011

"desenhar meus próprios pés na areia inexplorada" ― que o mar virá lavar

Tenho certa fama de ingênua, fama que o desdobramento dos fatos costuma comprovar. Quando criança, não era a mais esperta das criaturas, e meu movimento primeiro foi o de confiar ― não, primeiro era a passividade. O mundo, bem ou mal, com dores de dente ou catapora, era concha habitável, prolongamento do útero. Até que o cordão se rompeu e tornei-me arisca. Mas algo de ingenuidade e da passividade original persistiu, e hoje chego a preferi-las a incertos movimentos escusos que adivinho em certas incertas faces que se voltam para mim. Esta noite o mundo, em sua face sombria, obscura e pegajosa, veio beijar-me em sonho, e era detestável. Não sei se a clareza do dia entregou-me o que efetivamente sonhei, mas o que tenho é o que efetivamente a clareza do dia me entregou. Faz tempo sei que, com o mundo, sempre, eu só consigo ir até certo ponto, e é bem pouco. Conheço pessoas cuja performance parece fabulosa, espetacular: elas têm o meu aplauso, mas também minha reserva. Fabuloso, mesmo, é o “Cântico negro”, de José Régio:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
— Sei que não vou por aí!

José Régio: Antologia. Seleção e org. Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.50-51. 

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