“Hoje, de repente, como num verdadeiro achado, minha tolerância para os outros sobrou um pouco para mim também (por quanto tempo?). Aproveitei a crista da onda, para me por em dia com o perdão. Por exemplo, minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me aproximar de um modo ‘literário’ (isto é, transformado na veemência as arte) da ‘coisa social’. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era ‘fazer’ alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele ― e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura para mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Tenho consciência de estar simplificando primariamente o problema. Mas, por tolerância hoje para comigo, não estou me envergonhando totalmente de não contribuir para nada humano e social por meio do escrever. É que não se trata de querer, é questão de não poder. Do que me envergonho, sim, é de não ‘fazer’, de não contribuir com ações. (Se bem que a luta pela justiça leva à política, e eu ignorantemente me perderia nos meandros dela.) Disso me envergonharei sempre. E nem sequer pretendo me penitenciar. Não quero, por meios indiretos e escusos, conseguir de mim a minha absolvição. Disso quero continuar envergonhada. Mas, de escrever o que escrevo, não me envergonho: sinto que, se eu me envergonhasse, estaria pecando por orgulho.”
Os melhores contos de Clarice Lispector. 3.ed. São Paulo: Global, 2001, p.123-124.
Nenhum comentário:
Postar um comentário