Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 8 de abril de 2012

restar com as bagagens da vida

É bastante conhecido o conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, talvez a nossa narrativa por excelência de certo lugar/discurso do deslocamento. Estava na rodoviária, numa rodoviária. Bastidores intensos vislumbrados no relance de estar ali, de passagem. Então de repente se vive algo que sobra, que não cabe naquele espaço exíguo de suspensão da cidade, fazendo transbordar a vida que exige não ficar circunscrita àqueles limites. Esse algo não consegue caber na narrativa que se quer para si. Esse algo mal se acomoda na linguagem que serena sentidos. É preciso traduzir, encontrar as palavras que contornem a dimensão do pasmo, do espanto, do anticlímax que derruba com violência a árvore que um dia se plantou. Onde elas, as palavras que repusessem a vida em sua marcha reconhecível? Então, devagar, alguma coisa como ficar com a herança da vida foi se insinuando. E, talvez por estar numa rodoviária, socorreu-me a formidável imagem das bagagens da vida, de Guimarães Rosa: “Eu fiquei, de resto. (...) Eu permaneci, com as bagagens da vida.”

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