“O labor preserva
metafórica e concretamente a natureza para dela receber uma lição de progresso
e de vida. Graças à metáfora tomada de empréstimo pela literatura erudita
de Clarice ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, o labor abraça homem
e natureza, campo e cidade, abraça-os e os entrelaça num mesmo horizonte de
expectativas, fecundo e amoroso, feliz. ‘Tudo é passível de
aperfeiçoamento’, não é outra a lição do conto ‘Amor’. O labor não se manifesta
pela força humana alienada única e exclusivamente em experiência do
trabalho, em produtividade, repetimos com a ajuda de Marcuse. Ele é
manifestação de proximidade e distância do objeto de cuidado, de um misto de
vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz. É dom.
Tem algo da economia na sua acepção etimológica: oikos, casa,
e nomos, governo, o governo da casa, o governo do mundo. Tem algo a
ver, nos relatos das viagens renascentistas da descoberta de novos mundos,
com o trabalho anônimo da tripulação marinheira nessa casa flutuante que é o
navio. Eles cuidam do navio que abre as portas do mar. Na utopia comunista
de Marx, se lê que trabalho agrícola e trabalho industrial, trabalho rural
e urbano serão um dia sabiamente combinados, ali se lê, ainda, que ‘na
sociedade comunista o trabalho não será mais do que um meio para
alargar, enriquecer e embelezar a existência dos trabalhadores [grifo
nosso]’. Não é outro o sentido do labor em Clarice, só que ― grande
diferença! ― já passível de ser concretizado no cotidiano nosso.
Por duas vezes encontramos a palavra progresso no conto
‘Mistério em São Cristóvão’ e as duas vezes sintomaticamente atada ao mês
de maio. A primeira vez, logo no início do conto, para dizer que o progresso
tinha chegado àquela família depois de muitos anos, pois tudo e todos crescem
de maneira harmoniosa e verdadeira. Leiamos um curto trecho: ‘depois de
muitos anos quase se apalpava afinal o progresso [grifo nosso]
nessa família: pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças
têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios...’ Continua o
conto, descrevendo os efeitos do labor, incluindo entre as atividades do
labor ‘os negócios do pai’: ‘Sem se dar conta, a família fitava a sala
feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância.’ A segunda vez, ao
final do conto, depois do microrrelato do acontecimento dramatizado.
Os três cavalheiros mascarados olhando pela janela da casa e sendo olhados
de dentro do quarto pelo rosto branco da mocinha. Esse instante é o
momento em que o progresso se desfaz. Leiamos este outro trecho do conto:
‘E como o progresso [grifo nosso] naquela família era
frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e
teve de se refazer quase do princípio...’ Numa outra noite de maio, termina o conto, talvez
de novo se pudesse apalpar o progresso.
Uma vez mais é preciso tomar cuidado na compreensão de vocábulos
carregados tradicionalmente de significado estanque. O conceito de
progresso em Clarice (como o de acontecimento, beatitude, trabalho etc.) não
carece de apoio por parte da compreensão linear e ascensional do tempo,
não pode ser apalpado por metros lineares, quadrados e cúbicos; pode e
deve ser compreendido pelo movimento cíclico das estações do ano; pertence mais
ao calendário agrário do que ao calendário cristão. O instante-já, que
recobre um determinado e específico momento biográfico, sendo por isso
uma estrutura de courte durée, ao ser referendado pelo
calendário agrário, assume a estrutura de longue durée. As
metáforas tomadas de empréstimo ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino,
de novo, servem para ratificar a dupla temporalidade própria do progresso
qualitativo.
Maio é o mês por excelência do progresso, diz-nos o conto. A perigosa
passagem de uma fase da vida em família para outra fase é tematizada pela
passagem da velha para a nova estação do ano. Temos aí resquícios de uma
cultura oral pagã numa das mais instigantes obras literárias escritas a
partir dos anos 40. Num instante preciso, mocinha e tempo atravessam uma crise
sazonal. Maio é o mês da crise e da revelação, da evolução. Nesse mês é que se
dá o rito de fertilidade da mocinha. Mocinha e tempo vivem ambos com a
promessa de nova semeadura, colheita, messes e vindima. Diante da promessa
latente nas coisas, da propensão de um canteiro de gerânios,
os cavalheiros mascarados, qual feiticeiros, interrompem a caminhada
noturna e festiva para o baile, para o sabá. Interrompem ao mesmo tempo o fio
da vida da personagem, pondo em xeque o progresso naquela família. Ou seriam
os cavalheiros espíritos que saem do corpo da menina no momento em que
dorme profundamente? Pouco importa, se espíritos ou se cavalheiros mascarados,
o que importa é que nunca se divertiram com tanta felicidade. A haste de
um gerânio é encontrada partida pela avó. Um fio de cabelo branco aparece
na fronte da mocinha.
Como não lembrar o poema ‘Mês de Maio’, de Jorge de Lima. Esse ‘mesinho
brasileiro’, como carinhosamente o poeta o apelida, teve o seu dia
primeiro escolhido para ser Dia do Trabalho. Desde que se defina o conceito de
trabalho pelos ensinamentos da aula inaugural de Clarice Lispector.
Silviano Santiago. A aula inaugural
de Clarice. Wander Melo Miranda (Org.). Narrativas da modernidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.27-29.
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