Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 1 de maio de 2012

primeiro de maio: trabalho e labor

O labor preserva metafórica e concretamente a natureza para dela receber uma lição de progresso e de vida. Graças à metáfora tomada de empréstimo pela literatura erudita de Clarice ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, o labor abraça homem e natureza, campo e cidade, abraça-os e os entrelaça num mesmo horizonte de expectativas, fecundo e amoroso, feliz. ‘Tudo é passível de aperfeiçoamento’, não é outra a lição do conto ‘Amor’. O labor não se manifesta pela força humana alienada única e exclusivamente em experiência do trabalho, em produtividade, repetimos com a ajuda de Marcuse. Ele é manifestação de proximidade e distância do objeto de cuidado, de um misto de vigilância e afeto, de diligência e abandono, de inquietação e paz. É dom. Tem algo da economia na sua acepção etimológica: oikos, casa, e nomos, governo, o governo da casa, o governo do mundo. Tem algo a ver, nos relatos das viagens renascentistas da descoberta de novos mundos, com o trabalho anônimo da tripulação marinheira nessa casa flutuante que é o navio. Eles cuidam do navio que abre as portas do mar. Na utopia comunista de Marx, se lê que trabalho agrícola e trabalho industrial, trabalho rural e urbano serão um dia sabiamente combinados, ali se lê, ainda, que ‘na sociedade comunista o trabalho não será mais do que um meio para alargar, enriquecer e embelezar a existência dos trabalhadores [grifo nosso]’. Não é outro o sentido do labor em Clarice, só que ― grande diferença! ― já passível de ser concretizado no cotidiano nosso. 
Por duas vezes encontramos a palavra progresso no conto ‘Mistério em São Cristóvão’ e as duas vezes sintomaticamente atada ao mês de maio. A primeira vez, logo no início do conto, para dizer que o progresso tinha chegado àquela família depois de muitos anos, pois tudo e todos crescem de maneira harmoniosa e verdadeira. Leiamos um curto trecho: ‘depois de muitos anos quase se apalpava afinal o progresso [grifo nosso] nessa família: pois numa noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido diariamente à escola, o pai mantém os negócios...’ Continua o conto, descrevendo os efeitos do labor, incluindo entre as atividades do labor ‘os negócios do pai’: ‘Sem se dar conta, a família fitava a sala feliz, vigiando o raro instante de maio e sua abundância.’ A segunda vez, ao final do conto, depois do microrrelato do acontecimento dramatizado. Os três cavalheiros mascarados olhando pela janela da casa e sendo olhados de dentro do quarto pelo rosto branco da mocinha. Esse instante é o momento em que o progresso se desfaz. Leiamos este outro trecho do conto: ‘E como o progresso [grifo  nosso] naquela família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se desfez e teve de se refazer quase do princípio...’ Numa outra noite de maio, termina o conto, talvez de novo se pudesse apalpar o progresso. 
Uma vez mais é preciso tomar cuidado na compreensão de vocábulos carregados tradicionalmente de significado estanque. O conceito de progresso em Clarice (como o de acontecimento, beatitude, trabalho etc.) não carece de apoio por parte da compreensão linear e ascensional do tempo, não pode ser apalpado por metros lineares, quadrados e cúbicos; pode e deve ser compreendido pelo movimento cíclico das estações do ano; pertence mais ao calendário agrário do que ao calendário cristão. O instante-já, que recobre um determinado e específico momento biográfico, sendo por isso uma estrutura de courte durée, ao ser referendado pelo calendário agrário, assume a estrutura de longue durée. As metáforas tomadas de empréstimo ao mundo vegetal e ao cotidiano campesino, de novo, servem para ratificar a dupla temporalidade própria do progresso qualitativo. 
Maio é o mês por excelência do progresso, diz-nos o conto. A perigosa passagem de uma fase da vida em família para outra fase é tematizada pela passagem da velha para a nova estação do ano. Temos aí resquícios de uma cultura oral pagã numa das mais instigantes obras literárias escritas a partir dos anos 40. Num instante preciso, mocinha e tempo atravessam uma crise sazonal. Maio é o mês da crise e da revelação, da evolução. Nesse mês é que se dá o rito de fertilidade da mocinha. Mocinha e tempo vivem ambos com a promessa de nova semeadura, colheita, messes e vindima. Diante da promessa latente nas coisas, da propensão de um canteiro de gerânios, os cavalheiros mascarados, qual feiticeiros, interrompem a caminhada noturna e festiva para o baile, para o sabá. Interrompem ao mesmo tempo o fio da vida da personagem, pondo em xeque o progresso naquela família. Ou seriam os cavalheiros espíritos que saem do corpo da menina no momento em que dorme profundamente? Pouco importa, se espíritos ou se cavalheiros mascarados, o que importa é que nunca se divertiram com tanta felicidade. A haste de um gerânio é encontrada partida pela avó. Um fio de cabelo branco aparece na fronte da mocinha. 
Como não lembrar o poema ‘Mês de Maio’, de Jorge de Lima. Esse ‘mesinho brasileiro’, como carinhosamente o poeta o apelida, teve o seu dia primeiro escolhido para ser Dia do Trabalho. Desde que se defina o conceito de trabalho pelos ensinamentos da aula inaugural de Clarice Lispector. 

Silviano Santiago. A aula inaugural de Clarice. Wander Melo Miranda (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p.27-29.

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